Ouvi uma discussão sobre velórios curtos demonstrarem falta de respeito com a morte. Não quero entrar em discussões desse tipo porque falaria demais, da forma contundente que me é peculiar e poderia ser mal interpretada (não me importa quem levantou o assunto, me importa o assunto, apenas). Prefiro então transformar qualquer coisa que deseje compartilhar com os colegas em experiência literária. Ao menos alguma utilidade minhas polêmicas passarão a ter a partir de agora. Até porque eu detesto - ainda que não pareça - discussão, confusão e bate-boca. Mas adoro escrever. E me expresso melhor por escrito do que verbalmente, sem dúvida. Não é nada pessoal contra ninguém, mas a favor de mim.
Velório, a meu ver, é um ritual cultural de tortura coletiva. Você não vai se despedir do fulano, porque o fulano não está mais ali. Vai se despedir do corpo? E desde quando alguém se apega a um corpo? Ele não é nada. A gente ama a pessoa, não o corpo. E a maior dor está em ver que ela não está ali. Eu acho repulsivo o corpo morto de alguém que amei. Repulsivo porque é uma mentira. Ele finge que ainda é aquela pessoa, mas eu sei que está vazio.
Mais repulsivo que o corpo mentiroso é o próprio ritual do velório, pessoas mais interessadas em ver o estado do corpo e checar a veracidade das lágrimas da família, medindo o sofrimento alheio pelo número de horas em que o cadáver fica exposto. Não vejo razão para haver algum respeito pela morte se a morte não tem o menor respeito por nós. Ela chega, tira o pai de casa para sempre, arranca o filho dos braços da mãe, impede planos, tritura sonhos, destrói histórias de amor e não espera o final da festa. Respeito a memória de quem foi, por isso prefiro que se feche o caixão e se guarde a lembrança de antes, apenas.
Prefiro o respeito pela vida e pelos vivos, por mais piegas que essa afirmação possa parecer. Talvez porque todos os contatos que tive com a morte (e infelizmente foram muitos) foram crus e cruéis, não houve neles nenhum romantismo, nada que me despertasse alguma reverência, nada que me impedisse de ver que tudo acaba, que não somos nada e que de nada adianta um ritual que apenas adia o depois.
Depois é que vamos aprender a lidar com a ausência, a “ficha” demora alguns dias para cair e eu, sinceramente, prefiro sempre manter na memória a imagem da pessoa com vida do que lutar por dias para me livrar daquela imagem grotesca do corpo vazio. Porque eu não vejo a pessoa no corpo, logo, não ligo o corpo à pessoa. São duas coisas diferentes. Me deixem sozinha com a minha cabeça que eu começo a processar o luto.
A avó do meu marido morreu após meses de agonia. O velório durou duas horas e meia. O suficiente para o ritual de despedida sem dispersão. Depois, o sepultamento e o luto. Cumpriu seu propósito e não se alongou demais. Perfeito. Meu pai morreu na segunda-feira pela manhã e só foi sepultado no início da tarde de terça. O velório logo virou uma festa, com direito a comes e bebes em uma salinha reservada.
Fofocas sobre o momento da morte. Ele estava comendo pastel de quê mesmo? Ele morreu na hora ou demorou um pouco? Ele falou com alguém? Alguém falou com ele? Ah, o fulano falou com ele, e ele olhou assim, ó. Fofocas sobre o post-mortem. Você viu o machucado no nariz dele? Eles colocaram algodão nas narinas? Olha lá, está inchado. Velório é a festa da hipocrisia, celebrando a morte. Os convidados vão julgar o sentimento da família “você viu que a fulana nem chorou???” Abutres sentem cheiro de crisântemo.
Não digo que velórios imensos, com abraços intermináveis e alongadas sessões de carinho na testa gelada do morto sejam desnecessários, acredito que algumas pessoas realmente precisem disso para processar o luto e oficializar a despedida. Mas nem todo mundo precisa. Não é porque um velório dura duas horas e outro dura trinta horas que a primeira família ama menos que a segunda, ou se preocupa menos, ou sofre menos, ou sente menos, ou respeita menos. E vice-versa. Julgar que um velório longo seja prova de amor e um velório curto seja demonstração de descaso é não respeitar os vivos. Desrespeitar os únicos que estão ali para receber nosso apoio. Porque o corpo nunca nos deixa esquecer que está vazio.