sexta-feira, outubro 13, 2006

Correspondente

Confesso que tenho medo de perdê-lo. Mesmo que você continue dizendo que me quer como sempre quis, o ciúme e o desespero me colhem. O sentimento que nos une é muito forte, eu sei, e o que houve ontem é menor, é pequeno, mesquinho, você pode dizer. Eu sei. Desculpe, me desculpe.

Você é meu, devo crer nisso. Quero seu corpo, seus olhos, seus dedos, deixe-me sofrer o medo, ele pode nos ser útil. Serve pelo menos de consolo, repouso dos meus segredos. Tenho medo de perdê-lo e de me perder contigo.

Somos um, eu sei.

Sempre entregue,

Josephine.

Professor: Fabricio Carpinejar

Exercício: Escrever uma carta de amor sem a letra “a”.

Data da aula: 10 de outubro de 2006

quinta-feira, outubro 12, 2006

Que coisa

A casa está uma bagunça, um caos. Meu quarto transformou-se em escombros. Preciso encontrar a coisa, o negócio que perdi e que necessito para ontem, para coisar o troço.

Eu não posso sair de casa com o troço descoisado. Se eu entregar o troço descoisado vai ficar um horror. Por isso eu preciso encontrar a coisa no meio dos escombros do meu quarto, resgatar a única que pode ser capaz de tirar o troço de seu descoisamento e transformá-lo naquilo que quero entregar.

Ninguém nota que o troço está coisado porque é assim que ele deve ser entregue. Porém, quando não está coisado, a confusão é tão grande que ninguém conseguirá entender a ordem. Pega mal entregar o troço descoisado. Por isso eu preciso da coisa, para coisar o troço e, assim, restabelecer a ordem no universo.

Professor: Fabricio Carpinejar

Exercício: Escrever um texto sobre uma coisa. :-)

Data da aula: 11 de outubro de 2006

Retrato do abandono

O tom amarelado denuncia minha idade, as manchas que você vê se formaram sem que eu notasse, não sei de onde vieram os meus vincos. São mais profundos do que eu gostaria, assim como a lembrança dele, que me dividiu ao meio, arrancou parte de mim por um motivo fútil. Queria que eu me encaixasse em sua vontade, queria que eu fosse mais ele do que eu. As bordas distorcidas da minha história, minha importância diminuindo com o passar dos anos.

Em 1924, quando nasci, eu era importante, estou certa disso. Sei porque me lembro do orgulho com que todos me olhavam nos primeiros anos. Eu tinha lugar de destaque na família, eu era maior, eu sei, ainda que fosse mais nova, havia em mim uma grandiosidade que nunca mais encontrei. Não sei onde a perdi, sei que o tempo passou. Passou e fui deixada de lado, gradualmente, sutilmente. Fingiram que eu era importante, me enganaram, não me deixaram perceber enquanto eu me perdia.

Saí do lugar de destaque que eu tinha naquela casa, fui relegada a um canto, depois guardada entre páginas e páginas de história, até que ele me encontrou. Não respeitou meu espaço, não respeitou minhas marcas, levou metade de mim e me deixou sozinha.

Tento, ainda, depois desses anos, apesar da rigidez que sempre me pertenceu, manter um pouco dos traços do que me foi importante, do que guardo comigo como o meu maior tesouro. Eternizada em mim, aquela imagem, os rostos que jamais esquecerei. Então, finalmente, depois de esquecida, me encontrei em suas mãos. Você pode me achar óbvia nas marcas que trago do descaso, cada uma tem uma história, que não revelo. E não escondo.

Professor: Fabricio Carpinejar

Exercício: Biografia do objeto herdado que levamos para a sala de aula.

Data da aula: 11 de outubro de 2006

Imperdível

Alugo, troco por modelo antigo de baixa rotação ou vendo ótimo cérebro, desocupado, estado de novo, totalmente reformado. Caos panorâmico, peças amplas, salão de hiperatividade e grande área de instabilidade pacífica. Aceito cartão de crédito, FGTS, estuda-se imóvel ou veículo. S/ fiador. Direto c/proprietária. 9xxx-97xx

Professor: Fabricio Carpinejar

Exercício: Criar um anúncio classificado

Data da aula: 11 de outubro de 2006

terça-feira, outubro 03, 2006

Quem não foi, perdeu

Eu, Carmen, Davison, Júlia e Antonio

Davison, eu, Carmen, Júlia, Mário Corso e Antonio, fantasmagóricos.

Ainda que uma das fotos tenha ficado tremida, registro é registro e não podia faltar. Estou esperando as outras fotos que tiraram da gente lá na Cultura. A noite de lançamento do livro Encaixes foi memorável, parabéns à nossa colega Carmen!

E segunda-feira tem mais lançamento na Livraria Cultura, segue abaixo:

Lançamento do livro “O Herói Desvalido” (Bertrand Brasil), de Maria Carpi, segunda, dia 09/10 às 19h30, na Livraria Cultura Bourbon Shopping Country. Sessão de autógrafo, leitura dos poemas e debate. Nosso ilustre e amado coordenador Fabricio Carpinejar que, por coincidência, é também filho da autora, fará a apresentação.

Como vêem, nossa vida social no Curso de Formação de Escritores e Agentes Literários (bah, Fabricio, começo a concordar com os críticos de plantão, mas por outras razões: por favor, arranje um nome menor para o curso, cansa digitar tuuuuuudo isso) começa a ficar um tanto quanto agitada. Daqui a pouco abro neste blog a “agenda cultural do curso de Formação de Escritores e A.L.” (olha só, encolhi no nome do curso..hahaha…resolvi o problema!).

domingo, outubro 01, 2006

Sobre Velórios

Ouvi uma discussão sobre velórios curtos demonstrarem falta de respeito com a morte. Não quero entrar em discussões desse tipo porque falaria demais, da forma contundente que me é peculiar e poderia ser mal interpretada (não me importa quem levantou o assunto, me importa o assunto, apenas). Prefiro então transformar qualquer coisa que deseje compartilhar com os colegas em experiência literária. Ao menos alguma utilidade minhas polêmicas passarão a ter a partir de agora. Até porque eu detesto - ainda que não pareça - discussão, confusão e bate-boca. Mas adoro escrever. E me expresso melhor por escrito do que verbalmente, sem dúvida. Não é nada pessoal contra ninguém, mas a favor de mim.

Velório, a meu ver, é um ritual cultural de tortura coletiva. Você não vai se despedir do fulano, porque o fulano não está mais ali. Vai se despedir do corpo? E desde quando alguém se apega a um corpo? Ele não é nada. A gente ama a pessoa, não o corpo. E a maior dor está em ver que ela não está ali. Eu acho repulsivo o corpo morto de alguém que amei. Repulsivo porque é uma mentira. Ele finge que ainda é aquela pessoa, mas eu sei que está vazio.

Mais repulsivo que o corpo mentiroso é o próprio ritual do velório, pessoas mais interessadas em ver o estado do corpo e checar a veracidade das lágrimas da família, medindo o sofrimento alheio pelo número de horas em que o cadáver fica exposto. Não vejo razão para haver algum respeito pela morte se a morte não tem o menor respeito por nós. Ela chega, tira o pai de casa para sempre, arranca o filho dos braços da mãe, impede planos, tritura sonhos, destrói histórias de amor e não espera o final da festa. Respeito a memória de quem foi, por isso prefiro que se feche o caixão e se guarde a lembrança de antes, apenas.

Prefiro o respeito pela vida e pelos vivos, por mais piegas que essa afirmação possa parecer. Talvez porque todos os contatos que tive com a morte (e infelizmente foram muitos) foram crus e cruéis, não houve neles nenhum romantismo, nada que me despertasse alguma reverência, nada que me impedisse de ver que tudo acaba, que não somos nada e que de nada adianta um ritual que apenas adia o depois.

Depois é que vamos aprender a lidar com a ausência, a “ficha” demora alguns dias para cair e eu, sinceramente, prefiro sempre manter na memória a imagem da pessoa com vida do que lutar por dias para me livrar daquela imagem grotesca do corpo vazio. Porque eu não vejo a pessoa no corpo, logo, não ligo o corpo à pessoa. São duas coisas diferentes. Me deixem sozinha com a minha cabeça que eu começo a processar o luto.

A avó do meu marido morreu após meses de agonia. O velório durou duas horas e meia. O suficiente para o ritual de despedida sem dispersão. Depois, o sepultamento e o luto. Cumpriu seu propósito e não se alongou demais. Perfeito. Meu pai morreu na segunda-feira pela manhã e só foi sepultado no início da tarde de terça. O velório logo virou uma festa, com direito a comes e bebes em uma salinha reservada.

Fofocas sobre o momento da morte. Ele estava comendo pastel de quê mesmo? Ele morreu na hora ou demorou um pouco? Ele falou com alguém? Alguém falou com ele? Ah, o fulano falou com ele, e ele olhou assim, ó. Fofocas sobre o post-mortem. Você viu o machucado no nariz dele? Eles colocaram algodão nas narinas? Olha lá, está inchado. Velório é a festa da hipocrisia, celebrando a morte. Os convidados vão julgar o sentimento da família “você viu que a fulana nem chorou???” Abutres sentem cheiro de crisântemo.

Não digo que velórios imensos, com abraços intermináveis e alongadas sessões de carinho na testa gelada do morto sejam desnecessários, acredito que algumas pessoas realmente precisem disso para processar o luto e oficializar a despedida. Mas nem todo mundo precisa. Não é porque um velório dura duas horas e outro dura trinta horas que a primeira família ama menos que a segunda, ou se preocupa menos, ou sofre menos, ou sente menos, ou respeita menos. E vice-versa. Julgar que um velório longo seja prova de amor e um velório curto seja demonstração de descaso é não respeitar os vivos. Desrespeitar os únicos que estão ali para receber nosso apoio. Porque o corpo nunca nos deixa esquecer que está vazio.