segunda-feira, dezembro 11, 2006

Coisa ruim não morre*

“Os bons partem cedo”. O ensinamento dessa frase é bem claro: seja mau e viverá bastante. É quase uma ameaça. Ou uma receita. Ditadores sanguinários só morrem prematuramente quando se suicidam. Antes de recomendar aos pacientes que pratiquem exercícios físicos, parem de fumar, evitem gorduras, frituras, açúcar e estresse, os médicos deveriam ser categóricos: exercite a maldade.

Não, não adianta torturar animais, roubar criancinhas e outras atitudes covardes, ser realmente mau é ter peito para cometer atrocidades contra quem pode se defender. É um esporte radical. Claro que um médico jamais recomendaria um assassinato, embora assassinos frios, em regra geral, morram bem velhinhos. Maltratar psicologicamente seus entes queridos, desenvolvendo a capacidade de não sofrer, é a forma mais segura e tranquila de garantir longevidade. É necessário um trabalho de reestruturação emocional para que o sentimentalismo inútil não atrapalhe o processo. Sofrimento mata, causa doenças degenerativas, é contraproducente. O objetivo é torturar o outro, não a si próprio.

Altruísmo, bondade extrema, compaixão e amor ao próximo são ingredientes para uma vida curta. O altruísta confia no maldoso, decepciona-se, adoece e morre, não se engane. A confiança é a pior das drogas. O maldoso, ainda que fique doente, dificilmente estica as canelas antes de atingir a nona dezena de vida. Vão-se os pais, os irmãos, os sobrinhos, os inimigos, o cônjuge, a maior parte dos filhos, talvez até alguns netos, mas ele permanece, incólume. Quando, enfim, começar a reconsiderar sua vida, enxergar seus erros, pensar que talvez pudesse ter feito diferente, é certo: sucumbirá à doença ou morrerá dormindo. Se ele nunca cair no erro de repensar sua existência, comemorará seu centenário, com direito a bolinho no asilo.

Evidente, o médico tem o dever de alertar o paciente interessado em uma longa e maldosa vida, sobre os efeitos colaterais da escolha. Os verdadeiros amigos serão os primeiros a morrer, sobrando apenas os puxa-sacos, os interesseiros e os inimigos (essas três características, é importante ressaltar, podem estar presentes em uma só pessoa). A vida cercada por tais indivíduos e temperada com uma certa dose de desconfiança (necessária, para evitar as fatais decepções) e controle total de reações emocionais, pode tornar-se um tanto quanto desagradável, cansativa, pesada. Para evitar que, na busca pela longevidade, perca-se a vontade de viver, deve-se buscar uma meta. Pode ser dinheiro, pode ser posição social, pode ser qualquer coisa que não exija grande envolvimento emocional.

Dos sentimentos básicos, a inveja é permitida, o ódio, muito bem dosado (pois interfere na saúde), mágoas precisam ser esquecidas, assim como amor, tristeza e nostalgia. Impulsionado pela meta, o indivíduo empenha-se em atropelar tudo e todos, sem jamais concluir a tarefa.


*Exercício do curso de formação de escritores e agentes literários, da Unisinos.

PS: Não levem a sério, tá? Isso foi um exercício da faculdade, dentro do tema proposto. (Ou amanhã vai ter maluco dizendo que eu acredito que as pessoas devam ser maldosas e que ando por aí como arauto da psicopatia).

sexta-feira, outubro 13, 2006

Correspondente

Confesso que tenho medo de perdê-lo. Mesmo que você continue dizendo que me quer como sempre quis, o ciúme e o desespero me colhem. O sentimento que nos une é muito forte, eu sei, e o que houve ontem é menor, é pequeno, mesquinho, você pode dizer. Eu sei. Desculpe, me desculpe.

Você é meu, devo crer nisso. Quero seu corpo, seus olhos, seus dedos, deixe-me sofrer o medo, ele pode nos ser útil. Serve pelo menos de consolo, repouso dos meus segredos. Tenho medo de perdê-lo e de me perder contigo.

Somos um, eu sei.

Sempre entregue,

Josephine.

Professor: Fabricio Carpinejar

Exercício: Escrever uma carta de amor sem a letra “a”.

Data da aula: 10 de outubro de 2006

quinta-feira, outubro 12, 2006

Que coisa

A casa está uma bagunça, um caos. Meu quarto transformou-se em escombros. Preciso encontrar a coisa, o negócio que perdi e que necessito para ontem, para coisar o troço.

Eu não posso sair de casa com o troço descoisado. Se eu entregar o troço descoisado vai ficar um horror. Por isso eu preciso encontrar a coisa no meio dos escombros do meu quarto, resgatar a única que pode ser capaz de tirar o troço de seu descoisamento e transformá-lo naquilo que quero entregar.

Ninguém nota que o troço está coisado porque é assim que ele deve ser entregue. Porém, quando não está coisado, a confusão é tão grande que ninguém conseguirá entender a ordem. Pega mal entregar o troço descoisado. Por isso eu preciso da coisa, para coisar o troço e, assim, restabelecer a ordem no universo.

Professor: Fabricio Carpinejar

Exercício: Escrever um texto sobre uma coisa. :-)

Data da aula: 11 de outubro de 2006

Retrato do abandono

O tom amarelado denuncia minha idade, as manchas que você vê se formaram sem que eu notasse, não sei de onde vieram os meus vincos. São mais profundos do que eu gostaria, assim como a lembrança dele, que me dividiu ao meio, arrancou parte de mim por um motivo fútil. Queria que eu me encaixasse em sua vontade, queria que eu fosse mais ele do que eu. As bordas distorcidas da minha história, minha importância diminuindo com o passar dos anos.

Em 1924, quando nasci, eu era importante, estou certa disso. Sei porque me lembro do orgulho com que todos me olhavam nos primeiros anos. Eu tinha lugar de destaque na família, eu era maior, eu sei, ainda que fosse mais nova, havia em mim uma grandiosidade que nunca mais encontrei. Não sei onde a perdi, sei que o tempo passou. Passou e fui deixada de lado, gradualmente, sutilmente. Fingiram que eu era importante, me enganaram, não me deixaram perceber enquanto eu me perdia.

Saí do lugar de destaque que eu tinha naquela casa, fui relegada a um canto, depois guardada entre páginas e páginas de história, até que ele me encontrou. Não respeitou meu espaço, não respeitou minhas marcas, levou metade de mim e me deixou sozinha.

Tento, ainda, depois desses anos, apesar da rigidez que sempre me pertenceu, manter um pouco dos traços do que me foi importante, do que guardo comigo como o meu maior tesouro. Eternizada em mim, aquela imagem, os rostos que jamais esquecerei. Então, finalmente, depois de esquecida, me encontrei em suas mãos. Você pode me achar óbvia nas marcas que trago do descaso, cada uma tem uma história, que não revelo. E não escondo.

Professor: Fabricio Carpinejar

Exercício: Biografia do objeto herdado que levamos para a sala de aula.

Data da aula: 11 de outubro de 2006

Imperdível

Alugo, troco por modelo antigo de baixa rotação ou vendo ótimo cérebro, desocupado, estado de novo, totalmente reformado. Caos panorâmico, peças amplas, salão de hiperatividade e grande área de instabilidade pacífica. Aceito cartão de crédito, FGTS, estuda-se imóvel ou veículo. S/ fiador. Direto c/proprietária. 9xxx-97xx

Professor: Fabricio Carpinejar

Exercício: Criar um anúncio classificado

Data da aula: 11 de outubro de 2006

terça-feira, outubro 03, 2006

Quem não foi, perdeu

Eu, Carmen, Davison, Júlia e Antonio

Davison, eu, Carmen, Júlia, Mário Corso e Antonio, fantasmagóricos.

Ainda que uma das fotos tenha ficado tremida, registro é registro e não podia faltar. Estou esperando as outras fotos que tiraram da gente lá na Cultura. A noite de lançamento do livro Encaixes foi memorável, parabéns à nossa colega Carmen!

E segunda-feira tem mais lançamento na Livraria Cultura, segue abaixo:

Lançamento do livro “O Herói Desvalido” (Bertrand Brasil), de Maria Carpi, segunda, dia 09/10 às 19h30, na Livraria Cultura Bourbon Shopping Country. Sessão de autógrafo, leitura dos poemas e debate. Nosso ilustre e amado coordenador Fabricio Carpinejar que, por coincidência, é também filho da autora, fará a apresentação.

Como vêem, nossa vida social no Curso de Formação de Escritores e Agentes Literários (bah, Fabricio, começo a concordar com os críticos de plantão, mas por outras razões: por favor, arranje um nome menor para o curso, cansa digitar tuuuuuudo isso) começa a ficar um tanto quanto agitada. Daqui a pouco abro neste blog a “agenda cultural do curso de Formação de Escritores e A.L.” (olha só, encolhi no nome do curso..hahaha…resolvi o problema!).

domingo, outubro 01, 2006

Sobre Velórios

Ouvi uma discussão sobre velórios curtos demonstrarem falta de respeito com a morte. Não quero entrar em discussões desse tipo porque falaria demais, da forma contundente que me é peculiar e poderia ser mal interpretada (não me importa quem levantou o assunto, me importa o assunto, apenas). Prefiro então transformar qualquer coisa que deseje compartilhar com os colegas em experiência literária. Ao menos alguma utilidade minhas polêmicas passarão a ter a partir de agora. Até porque eu detesto - ainda que não pareça - discussão, confusão e bate-boca. Mas adoro escrever. E me expresso melhor por escrito do que verbalmente, sem dúvida. Não é nada pessoal contra ninguém, mas a favor de mim.

Velório, a meu ver, é um ritual cultural de tortura coletiva. Você não vai se despedir do fulano, porque o fulano não está mais ali. Vai se despedir do corpo? E desde quando alguém se apega a um corpo? Ele não é nada. A gente ama a pessoa, não o corpo. E a maior dor está em ver que ela não está ali. Eu acho repulsivo o corpo morto de alguém que amei. Repulsivo porque é uma mentira. Ele finge que ainda é aquela pessoa, mas eu sei que está vazio.

Mais repulsivo que o corpo mentiroso é o próprio ritual do velório, pessoas mais interessadas em ver o estado do corpo e checar a veracidade das lágrimas da família, medindo o sofrimento alheio pelo número de horas em que o cadáver fica exposto. Não vejo razão para haver algum respeito pela morte se a morte não tem o menor respeito por nós. Ela chega, tira o pai de casa para sempre, arranca o filho dos braços da mãe, impede planos, tritura sonhos, destrói histórias de amor e não espera o final da festa. Respeito a memória de quem foi, por isso prefiro que se feche o caixão e se guarde a lembrança de antes, apenas.

Prefiro o respeito pela vida e pelos vivos, por mais piegas que essa afirmação possa parecer. Talvez porque todos os contatos que tive com a morte (e infelizmente foram muitos) foram crus e cruéis, não houve neles nenhum romantismo, nada que me despertasse alguma reverência, nada que me impedisse de ver que tudo acaba, que não somos nada e que de nada adianta um ritual que apenas adia o depois.

Depois é que vamos aprender a lidar com a ausência, a “ficha” demora alguns dias para cair e eu, sinceramente, prefiro sempre manter na memória a imagem da pessoa com vida do que lutar por dias para me livrar daquela imagem grotesca do corpo vazio. Porque eu não vejo a pessoa no corpo, logo, não ligo o corpo à pessoa. São duas coisas diferentes. Me deixem sozinha com a minha cabeça que eu começo a processar o luto.

A avó do meu marido morreu após meses de agonia. O velório durou duas horas e meia. O suficiente para o ritual de despedida sem dispersão. Depois, o sepultamento e o luto. Cumpriu seu propósito e não se alongou demais. Perfeito. Meu pai morreu na segunda-feira pela manhã e só foi sepultado no início da tarde de terça. O velório logo virou uma festa, com direito a comes e bebes em uma salinha reservada.

Fofocas sobre o momento da morte. Ele estava comendo pastel de quê mesmo? Ele morreu na hora ou demorou um pouco? Ele falou com alguém? Alguém falou com ele? Ah, o fulano falou com ele, e ele olhou assim, ó. Fofocas sobre o post-mortem. Você viu o machucado no nariz dele? Eles colocaram algodão nas narinas? Olha lá, está inchado. Velório é a festa da hipocrisia, celebrando a morte. Os convidados vão julgar o sentimento da família “você viu que a fulana nem chorou???” Abutres sentem cheiro de crisântemo.

Não digo que velórios imensos, com abraços intermináveis e alongadas sessões de carinho na testa gelada do morto sejam desnecessários, acredito que algumas pessoas realmente precisem disso para processar o luto e oficializar a despedida. Mas nem todo mundo precisa. Não é porque um velório dura duas horas e outro dura trinta horas que a primeira família ama menos que a segunda, ou se preocupa menos, ou sofre menos, ou sente menos, ou respeita menos. E vice-versa. Julgar que um velório longo seja prova de amor e um velório curto seja demonstração de descaso é não respeitar os vivos. Desrespeitar os únicos que estão ali para receber nosso apoio. Porque o corpo nunca nos deixa esquecer que está vazio.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Desenvolvimento de Texto

Para desenvolver primeiro é preciso envolver. Desenvolver é desvendar, tirar a venda, desabraçar, tirar o mistério, desvelar, deixar cair o véu. Desenvolver um texto que não envolve é um paradoxo, simplesmente não é possível. Ou talvez até seja, mas não cumpre seu propósito. O texto estará fazendo qualquer coisa menos desenvolvendo, invente outra palavra.

O texto primeiro tem de envolver, abraçar, conquistar, vendar, elevar a curiosidade, abraçar, instigar para depois começar a despir-se diante do leitor, como em um relacionamento. Quando houver intimidade o suficiente é permitido que se retire o mistério, se desenvolva, desembrulhe, sem, no entanto, desencantar.

Lentamente ele se mostra, por inteiro, e se deixa conhecer por completo. Então, totalmente entregue, ele se encerra, deixando, no ar, um leve aroma de saudade.

sexta-feira, setembro 22, 2006

Me perdi hoje. Ela me deixou em cima de uma mesa e certamente está à minha procura. Sou um sapato boneca. Não fui escolhido por acaso, ela me queria. Experimentou, perguntou o preço e levou. Ela preza o conforto. Não se importa se minha tinta descasca ou se minha sola se desgasta. Me pisa pelo lado de fora, porque anda muito depressa.

Estamos juntos há muitos anos e sou um de seus preferidos. Ela é reservada, não se mostra, não expõe sua delicadeza, se esconde. Me esconde. Andamos por muitos lugares, ela sabe onde quer chegar, mas não sabe como, não me diz como. Esconde sua beleza e sua intimidade. Não gosta de se expor, por isso sou discreto.

Pequena, delicada, romântica. Mantém uma paixão platônica e não tinge os cabelos. Avessa à maquiagem, não quer ser vista. Só eu a vejo. Só ela me vê.

Liquidificador

Não liberto mais palavras. Aqui, incerta é a minha fachada. Escreverei para sempre. Não tenho medo de escolhas, eternas e absolutas. Encerro portas. Não falo. Devo mostrar-me mais. Escondo a maquiagem. Não preciso de olhares. Não pense que enxerga algo. Não procuro mais palavras, elas me fogem. Deixo a sombra e atravesso ao outro lado. Folhagem. Tranco o que é meu em uma caixa. Guardo. Me cansam olhares de um mundo que não é meu. Esqueço. Leiam, apenas, não me olhem. Não falo, escrevo. Não me julgue pelo seu mundo, ninguém conhece o meu. Me desconstruí e reconstruí tantas vezes… Sou várias. Sou todas. Nenhuma. Silêncio. Respiro.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Ego Post

Me pediram uma foto, uma frase de um escritor como epígrafe, uma lista de livros preferidos e uma frase de próprio cunho que me defina. Demorei um bocado, indecisa que sou, para escolher a foto, a frase do escritor e fazer a lista de livros e autores favoritos. Na hora de escrever uma frase que me definisse, achei que soaria meio artificial construir alguma coisa assim, do nada, então resolvi procurar em textos antigos uma frase minha que me definisse, de verdade. O fato é que encontrei tantas que as agrupei em blocos ridículos e desconexos e elas são todas tão ruins que - achando que seria um grande desperdício escolher apenas uma e ignorar as quatrocentas e sessenta e cinco mil restantes - decidi utilizar esse espaço para elencá-las, somadas a alguns fragmentos maiores de textos. Assim deve ficar mais fácil escolher alguma ou inventar uma nova a partir de todas essas. Talvez seja uma forma de fazer com que me conheçam melhor, talvez seja um modo mais rápido de convencer alguém a me internar no hospício. Quem sabe?

“Sou massinha de modelar. Assim, como aquelas que gosto de transformar em frutas, animais, rostos. Misturo cores, fico horas pensando em um novo formato, arrisco daqui e dali e sei que nunca vai secar. Pode até derreter um pouco, mas secar, jamais.”

“Sou fã de espaços. Espaços são mais importantes do que letras grandes, para mim. Sem eles, tudo se embaralha horrivelmente, mesmo com óculos.”

“Algumas pessoas nascem prontas para seguir rotinas, outras vêm com defeito de fabricação. Eu sou uma delas. Totalmente desprovida de senso de direção, noção de horários e agenda biológica de compromisso, sou escrava de anotações. ”

“Mais uma pessoa, como qualquer outra. Do mesmo tamanho das outras, do mesmo formato que as outras, talvez com um pouco mais de cabelo. Igual. Justo eu, que me sinto tão única, tão especial, tão diferente, sou exatamente igual a qualquer um.”

“Dá um pequeno desespero saber que todas aquelas pessoas que passam por mim são histórias que ficarão sem ser contadas, coisas que eu jamais saberei, que ninguém vai me dizer. E o conhecimento ao qual tenho acesso é tão mínimo diante da imensidão desse mundo e de tanta informação existente, que eu sou uma formiguinha carregando um minúsculo grão de açúcar, como se fosse grande coisa.Meu maior problema com a multidão é saber que ela passa por mim e não volta para contar a história. ”

“Eu sou a pessoa mais mal interpretada do universo, por isso às vezes tenho vontade de ficar calada em um canto, apenas ouvindo, com um sorriso discreto, porque qualquer interferência minha pode ser tomada de forma equivocada. Deve ser um dom.”

“Fui me reconstruindo, tapando os buracos, refazendo, redescobrindo e quando vi, me tornei uma pessoa que eu não conheço. Virei uma pessoa over. Tudo o que eu não tinha agora tenho em excesso. Facilmente mal interpretada, completamente exposta, às vezes com uma vontade horripilante de encontrar uma concha e virar ostra.”

“Sou muito ruim com metáforas desde o dia em que resolvi ser clara. Sou muito ruim com disfarces desde quando decidi ser autêntica. Sou muito ruim com palavras, desde que comecei a escrever. Algumas coisas são ruins comigo e isso eu realmente não sei explicar.”

“Não sou prepotente, não sou pretensiosa. Sempre soube que eu era um embuste. Na verdade acho que todo mundo pensa isso de si mesmo, vez ou outra. Porque só nós sabemos o tamanho das nossas fraquezas, dos nossos medos, da nossa insegurança, dos nossos erros… O olho humano vem com uma lente de aumento para as coisas ruins e as coisas boas estão todas escritas em letras miúdas.”

“Hoje não sei o que dizer, por isso não digo nada. Me escondo um pouco, descanso os olhos. Deixo de lado a minha vida para viver outras vidas, por alguns instantes.”

“Sou uma esponja que suga todas as influências ao redor e libera, se espreme, ao correr de uma caneta sobre o papel. Impeçam-me de escrever e eu morro inchada.”

“Costumo dizer que sou um felino, mais especificamente um gato, que gosta de paz, e sossego, sombra, carinho e água fresca, que prefere ficar em casa a sair por aí, se cansando. Gato castrado, obviamente, sem o stress hormonal que faz com que o pobre bicho contrarie sua natureza e viva na rua.”

“O ideal mesmo é eu poder escrever em um lugar com ar condicionado. Aí você terá uma Vanessa com 100% de sua capacidade mental e humor inabalável. Se além disso houver uma barra de chocolate, pode ter certeza de que terá uma ótima companhia para qualquer coisa.”

“São umas cinco lixas de unha assassinas que, juntas, cometem diversas atrocidades contra qualquer coisa que caia, incauta, dentro da bolsa. A carinha vermelha do meu celular já está quase branca, nada permanece com tinta, os papéis começam a se desfazer e canetas, óculos, o próprio visor do celular, tudo, tudo, tudo começa a ficar riscado. Eu achava que era algum campo magnético destrutivo interessado em desintegrar minhas coisas, mas quando meus óculos de sol ficaram esteticamente prejudicados por terem sido largados desprotegidos dentro daquele ambiente, desconfiei das lixas de unha. Posso dizer que encontrei as impressões digitais delas nas lentes. É uma quadrilha.”

“Por que é que eu consigo acumular tanta coisa? Comprar tanta coisa? Ajuntar tanta coisa? Empilhar tanta coisa? Amontoar tanta coisa? Por que eu não sou uma pessoa mais resumida, compacta, organizada, sintética? Por que meus textos têm que ser enormes? Coleciono palavras inúteis, papéis soltos, fotos fora do álbum, tiro as coisas das embalagens para que se sintam livres e elas se espalham…”

“Sabe aqueles perus de natal que a gente coloca no forno e que apitam quando prontos? Pois é, apitei hoje. Sou praticamente um peru de natal, metaforicamente falando, por favor. Apito. E saio do forno. Já sou meio bolo, algo estranho, um bolo de peru que acabou de sair do casulo. Sim, por mais intragável que eu pareça, garanto a qualidade.”

“Eu não fumo, nem bebo, então sou um ser saudável, mesmo que ligeiramente sedentária. Ando bastante e pretendo voltar à musculação. Menos pela saúde, mais pela estética, afinal de contas, no fundo, no fundo, eu sou superficial. E não quero chegar aos quarenta, cinquenta, lamentando que meu mundo caiu, ou que alguma outra coisa minha caiu. Mas é uma eterna crise de consciência. O trabalho braçal desvia a energia que poderia estar sendo usada pelo cérebro para o trabalho intelectual. Se não for verdade, ao menos é uma boa desculpa.”

“Sou um xarope concentrado, enjoativo, quase venenoso. Deve-se tomar em pequenas doses. Virei uns três vidros de mim nos dias que se passaram e enjoei.”

“Não sei escrever. Sei construir, derramar, tingir, pintar. Desenho as letras como gostava de desenhar rostos, quero perfeição e nunca consigo, prefiro pecar por excesso do que por omissão, sombreio bastante para dar realismo.”

“Por que devemos guardar as coisas em gavetas? Eu sempre encontro as coisas quando elas não estão guardadas, e sempre as perco quando estão. Querem nos fazer acreditar que perderemos aquilo que deixarmos fora das caixas, gavetas e garrafas enquanto sabemos que é bem o contrário. Por que nos dobramos a isso então? Por que dobramos?

Por que dobramos as roupas nas gavetas? Por que simplesmente não as deixamos emboladas, como elas gostam de ficar, naturalmente?

Eu ando espalhada, fora minhas garrafas de roupas no armário. Por dentro sou assim, não sou uma pessoa dobrada. Alguém me disse que nosso armário revela quem somos por dentro. Seria preocupante, se eu já não soubesse.”

“Durante muito tempo observei. Observei demais, falei pouco, com medo de falar bobagem. Há algum tempo o medo de falar bobagem passou, e passei a falar bobagem demais.”

“Todas as palavras que procuro, encontro em minha língua inventada. E posso ficar horas inventando histórias com milhares de palavras, sem repetir nenhuma, escrevendo contos intermináveis em minha cabeça e descortinando versos inexistentes.

A única parte ruim é que ninguém entende minha língua inventada. Como as palavras partem da minha cabeça, só a minha cabeça consegue decodificá-las. Não quero escrever um dicionário, dicionários aprisionam palavras. Não posso colocá-las em fila indiana e inventar regras gramaticais, porque elas se intimidariam e desistiriam de nascer.

Então fecho meu livro inventado, aquele que vive dentro da minha cabeça, guardo a caneta inventada, o gravador que dita palavras, que as mistura, modifica, inventa, renova. Guardo tudo naquela gaveta em que convivem alegremente as minhas coisas bagunçadas, dentro de minha inestimável caixa craniana. Procuro as palavras no idioma conhecido, esse, que uso para escrever este texto. Não as encontro. Procuro novamente. Trabalho ingrato.

Se quiser escrever para não ser lida, uso minhas palavras inventadas. Se houver quem me leia, tenho que me fazer entender, comunicar-me usando as palavras antigas, aquelas repetidas, que todo mundo entende. É quando guardo a liberdade em caixinhas e me esforço para fazê-la parecer que tem asas.”

quarta-feira, setembro 06, 2006

Obituário

Acho engraçado ler que saí sem dizer nada, enquanto me lembro de tudo o que disse. Teu problema é só entender palavras, enquanto algo não é dito ou escrito, é como se não existisse. Incapaz de compreender sutilezas, não percebeu os sinais que dei, não notou que a doença que se abateu sobre nosso relacionamento era fatal, não viu que ele agonizava, não se deu conta de que os músculos falhavam, ele não mais andava, não se alimentava, até que parou de beber água e morreu à míngua. Porque ele - o relacionamento - não falava, você não foi capaz de olhar em seus olhos e ver a dor, o sofrimento, o quanto ele clamava por um gole de alento, por um pedaço de carinho, de atenção, de respeito.

Não, eu não saí calada, eu saí gritando, saí rasgando as roupas da mala em uma fúria tão escandalosa que apenas sua indiferença não notou. E agora, quem sabe, você entenda a razão de eu ter tomado essa decisão, o simples fato de que cansei de traduzir tudo em palavras para que você pudesse entender, às vezes só sentir e viver é necessário, mas não com você. Você tem uma necessidade constante de legendas, irritante, é incapaz de observar meus olhos, meus movimentos, de interpretar minhas atitudes de maneira clara, sem que eu precise explicar detalhadamente tudo como se você fosse cego.

Sua cegueira emocional, que precisa de respostas lógicas por escrito é a principal responsável pela tragédia que se abateu sobre nosso relacionamento, que o levou ao último e desesperado suspiro. Sua carta só comprova o quão certa eu estava ao sair pela porta em busca de ar, você se preocupa com a explicação que vai dar para os seus pais, para os nossos amigos, para o cachorro, mas nada de se preocupar em me explicar alguma coisa, em tentar alguma mudança ou respeitar minha escolha. Por que não se empenhou em fazer dar certo? Por que deixou os dias correrem, os probleminhas se acumularem até que se transformassem no monstro que nos engoliu? Por que não se esforçou para que esse dia nunca chegasse e apenas deixou a vida nos levar?

Conte para os seus pais das noites em que dormimos separados, das minhas crises de choro que você interpretava como frescura, das vezes em que a comida queimou na panela porque nenhum de nós dois queria aquele jantar, porque aquele jantar não queria nenhum de nós dois. Conte para o cachorro que as coisas não são assim tão fáceis, que você não sente cheiros, que não é capaz de perceber a diferença entre o loiro acobreado e o vermelho intenso. Conte das vezes em que te esperei em casa de roupa nova, que passei a tarde inteira escolhendo no shopping para que você me achasse bonita e você se irritou porque eu havia saído do orçamento. Aproveite e conte também - para o cachorro - do dia em que me arrumei como nunca para conhecer seus amigos e seu chefe e você ficou bravo porque eu estava arrumada demais. Incapaz de compreender que eu queria ficar bonita para que eles te admirassem por ter conseguido que uma mulher tão interessante se apaixonasse tão enlouquecidamente por você. Mas você queria legendas. E eu terminei a noite chorando, sozinha. Talvez ele te entenda.

Eu gritei, meu amor, eu gritei, enquanto nosso relacionamento agonizava, à morte, de forma tão clara e dolorosa, você se mostrou tão surdo quanto cego e não fui capaz de te fazer compreender além do que você queria enxergar. Você tem o braço tatuado, isso sai com laser, com muito menos dor do que eu senti para apagar da minha alma o nome que você gravou a ferro quente. Tive que arrancar a carne, sangrando, para conseguir pensar em recomeço.

Não, eu não vou dizer que tenho de ser coerente com meus desejos, mas com minhas escolhas. Quando eu aceitei teu convite para ir morar contigo, escolhi ser feliz, escolhi deixar o sofrimento para trás e essa é uma escolha que não posso trair. Não podia mais continuar, vendo o cadáver do nosso relacionamento apodrecer sob o tapete enquanto você fingia que ele ainda caminhava pela casa, conversando com o nada. Manter nossa conta conjunta pode ser uma bela maneira de iludir-se com o fantasma do que fomos, se te apetece viver de passado e sofrer por ter feito a escolha errada enquanto havia tempo. Abro outra, não há problema. Mudo de nome como mudei de casa, troco os documentos e queimo as roupas, não sou mais a mesma pessoa.

Enquanto você não se convencer, a sala continuará com esse estranho cheiro de morte, de carne apodrecida, de decomposição, o tempo de salvar o moribundo já passou e nada mais pode ser feito senão deixar que queime no luto o cadáver, que descanse com dignidade, para que reste ao menos a suave lembrança dos dias em que fomos felizes, enquanto a vida pulsava forte e a pele do corpo era corada. Respeito. Permita-me velar meu morto e sofrer meu luto dignamente enquanto a dor não passa. Não deixe algo que era tão bonito ficar tão feio a ponto de causar asco, não quero ter vontade de rasgar nossas fotos e queimar suas cartas, respeite, resigne-se como me resignei enquanto via que minhas tentativas de mantê-lo vivo eram tão vãs quanto minha vontade de lutar por mais tempo.

Não se preocupe com o que dirá a seus pais, se preocupe com o que vai dizer para você mesmo.

—-

Professor: Mario Corso

Data da aula: 06 de setembro de 2006

Exercício: Formular uma resposta com bons argumentos para a carta abaixo:

“Eu quero uma resposta. Não vou aceitar essa tua saída porta afora sem dizer nada.

Sei do desgaste da nossa relação, sei que estava difícil (e qual relação é fácil?), mas não é humano saíres assim sem dizer nada.


Posso até suportar nossa casa vazia, meu peito vazio, mas não esse vazio de palavras. Não consigo ficar nessa dúvida: por que desististes, por que fostes embora?


Quero que me digas o que vou dizer para meus pais, para nossos amigos? O que faço com o cachorro cujo olhar me pergunta a que hora vais chegar? Porque não disseste que tinhas dúvidas quando escrevi teu nome no meu braço? Eu é que devia ter me dado conta quando não quisestes te tatuar também… Sabes por que? Por que tatuagem é pra sempre e na tua vida nada dura muito, tu não te compromete com nada mesmo! Não segui minha intuição por que te amava e fui apostando na relação.


Enquanto tu passa a borracha na nossa história e recomeças em outro lugar eu fico para trás, administrando o que sobrou da nossa vida. Consigo até te imaginar falando com as pessoas sobre como é “importante se renovar, manter as emoções em alta, ser coerente com os desejos” e todas essas tuas balelas de autonomia. Eu, incoerente com meus sentimentos que sou, de certo, fico aqui me cortando com os cacos do nosso relacionamento, alucinando tua presença em cada canto.


Continuo aqui onde me deixastes, esperando que me digas algo. Enquanto teu mail não chegar não faço nenhum movimento, não vou fazer nada do que pedistes, não fui no banco nem vou. Outra coisa, não liga. Quero por escrito. Sabe por que? Porque as letras duram…”

segunda-feira, setembro 04, 2006

Castidade - II

Recolhera em um cesto as roupas sujas do sacerdote. Dia vinte e oito, quase trinta dias passados desde a última vez em que vira aquela mancha no lençol. Era sagrado: de quinze em quinze dias lavava o lençol, as roupas de dormir também e o colchão tinha que ser colocado discretamente ao sol. Nunca tinha ficado mais de vinte dias sem o alívio que vinha do sonho. Lembrou da primeira vez em que recebeu o lençol sujo e, assustada, ouviu do padre a recomendação de colocar o colchão para secar ao sol. Já tinha visto isso acontecer com seu irmão, um adolescente pecador, devasso, não deveria ser assim também com o padre. Ela tinha quinze anos, era seu terceiro dia como lavadeira e ele teve a paciência de explicar que aquilo que ela via nada tinha a ver com pecados da carne, chamava-se polução noturna, uma forma que Deus havia criado para esvaziar o depósito de sêmen do homem casto. Segurou um risinho, será que seu irmão Otávio, que alardeava ser o maior garanhão da vila, era casto? Se o padre dizia…

De fato, quando arranjou namorada fixa, Otávio parou de colocar o colchão na varanda para secar. Depois teve filho e casou, ficou claro que a castidade tinha ido para a lua. Mas não a do Padre Fernando. Depois de dez anos ele ainda continuava a lhe entregar a prova de sua castidade a cada quinze dias, contados no calendário. Certa vez se atrasou dois dias, outra, veio três dias adiantado, mas deve ser como a menstruação das mulheres, atrasa, adianta, mas vem.

Ela também era casta, não queria conversa com homem, sua vida era o padre. Começou como lavadeira, agora fazia quase todos os serviços e descobrira em Padre Fernando um homem dedicado e sincero, de sorriso puro, bem diferente do Padre Afonso, que tinha olhar lascivo e fazia brincadeiras de mau gosto, ou do Padre Rodolfo, que vivia com crianças e adolescentes e depois que leu alguma coisa no jornal sobre um padre que fazia maldades com crianças, ela começou a desconfiar. Irene, lavadeira do Padre Rodolfo, disse que a última vez em que teve que colocar o colchão ao sol foi em 1990. Casto ele não era. Não mesmo.

Quinze dias costumava ser o prazo certo, dezoito dias, o máximo, mas quase trinta? Quase trinta parecia muita coisa. Será que ele pecou? Será que saiu com alguma dona? Talvez aquela loira que vivia se confessando, ou aquela morena de pernas grossas que usava minissaia na missa e sentava no primeiro banco? Não, Padre Fernando era casto. Será que ele caiu na tentação da carne? Teria se masturbado no banheiro, longe dos lençóis? Não, ele não faria isso, não faria mesmo. Mas trinta dias seria muita coisa para quem funcionava de quinze em quinze dias. Se fechasse trinta dias ela iria perguntar, ele teria que dizer, que confessar, não era justo, ela lavava sua roupa e cuidava da casa há dez anos, dez anos sem outra vida, dez anos de dedicação, não era justo que ficasse nessa dúvida, nessa angústia.

Um homem alto, alto e bonito. Forte, olhar suave, sorriso que derreteria o coração de qualquer mulher, se ele não fosse padre. Ah, mentira, mesmo ele sendo padre ela sabia que quase todas as mulheres da paróquia se derretiam por aquele sorriso. Um interesse estranho, se interessavam por ele ser padre, mas se ele se interessasse por elas, não poderia mais ser padre, e não sendo ele mais padre, elas não se interessariam mais por ele. Mas ela o conhecia além da batina. Ela lavava sua batina, passava e deixava estendida para que ele a usasse. Ela queria que ele a usasse. Ele era muito mais do que um padre, era especial. Enviado de Deus para aquela paróquia depois da morte do Padre Alberto.

Era difícil de limpar. Se espalhava pelo lençol de baixo, enchia a mão, encostava no lençol de cima, ensopava o pijama, e ela pensava na triste sina de todo aquele líquido. Tinha sido feito para estar dentro de uma mulher, para gerar um filho, e agora jazia, inerte, à morte, naquela cama. Jamais estaria dentro de uma mulher, jamais geraria um filho. Triste, muito triste que Deus faça um homem com todos esses líquidos para não deixar que ele os use. Se os padres são predestinados por Deus para serem padres, por que não nascem sem a função masculina? Por que precisam produzir sêmen e sujar a roupa de cama de quinze em quinze dias? Será que o sêmen dos padres é igual ao dos outros homens? Será que tem sementinha também?

Quase trinta dias. Ela estava preocupada. Será que ele caiu em pecado? Ou terá virado santo? Talvez, finalmente, Deus tenha tirado dele essas coisas inúteis reprodutivas. Não deve ter mais desejo nenhum, nem glândula e aquelas coisas que ele explicou, não deve mais ter polução noturna porque alcançou a santidade. Nesse caso, ela nunca mais teria que colocar seu colchão ao sol, discretamente, para esconder aquele segredo que era só dos dois. Mas ele diria, se houvesse a possibilidade da santidade ele diria quando explicou sobre a polução noturna “padre também é homem” ele disse, certa vez. Não ele. Ele era mais.

Deitada, em sua cama, aqueles pensamentos pecaminosos devastavam sua mente e ela se espalhava pelo lençol de baixo, enchia a mão, encostava no lençol de cima, ensopava o pijama, queria que ele a usasse, na tentação da carne, e a deixasse à morte, naquela cama. Depois rezava, rezava, rezava e se punia, se penitenciava. Há quase duas semanas, finalmente, reuniu coragem para se confessar. Contou tudo. Falou das noites em que pensava nele, falou do líquido, falou da carne, do lençol, do travesseiro, da vez em que deitou sobre o colchão, que sentiu o gosto, que ignorou a castidade, a sua castidade, a dele, do quanto era dele. Falou tudo, ele, calado. No final, recomendou-lhe as rezas que ela já sabia de cor.

E calou-se.

Um novo olhar - II

Não enxergava mais como antes, desde o aniversário de quinze anos da filha. Para ler, precisava afastar o livro do rosto, ou as letras embaralhavam-se. Vivia cansada, com dores de cabeça, não conseguia mais enxergar o buraco da agulha e as camisas do marido ficavam sem botão, definitivamente. As reclamações eram tantas que certo dia as camisas sem botões ficaram sem dono, definitivamente. Foi ao oftalmologista e descobriu a presbiopia, o médico explicou que era uma consequência natural do envelhecimento, os músculos oculares perdem a flexibilidade e o cristalino torna-se menos elástico, perdendo sua capacidade de acomodação, por isso a dificuldade de enxergar de perto, por isso a necessidade de mais luz para ler. Ele definiu a presbiopia como uma condição óptica onde as modificações produzidas pela idade diminuem de modo irreversível o poder de acomodação.

Já notara a falta de flexibilidade, a dificuldade em enxergar de perto, a necessidade de afastar objetos, pessoas, sentimentos. Ela, que era apenas exigente ao escolher um homem, tornara-se seletiva demais, quase intolerante. Inflexível, como seu cristalino. Quando jovens aceitamos melhor os defeitos do outro e conseguimos um bom relacionamento mesmo com as diferenças, depois perde-se a flexibilidade, a elasticidade, a capacidade de adaptar-se facilmente ao que está perto. Perdera a capacidade de acomodação, sentia-se incomodada com a falta de luz nos relacionamentos, queria tudo às claras.
Sem perceber, afastava as pessoas, os homens, os filhos, a família, porque precisava enxergá-los melhor, afastava de seus olhos o que necessitava urgentemente de ver. Tornara-se seletiva, ela sabia, porque só conseguia ver o que estava lá na frente, ela agora escolhia olhando o futuro, para saber se seus filhos cresceriam bem com aquele padrasto, se haveria algum depois para aquele relacionamento, tentava adivinhar se conseguiriam ficar juntos depois do jantar, depois da cama.

Olhara demais para o passado, os anos escorregavam, as crianças cresciam, não havia mais tempo para viver de ensaios. Não era exigente, era precavida. Descobriu que quando se aproximava demais, não enxergava nada, era devorada pelos sentimentos e não conseguia pensar em futuro algum, sobrava apenas um dia após o outro. Não conseguia mais imaginar-se com qualquer um só para não ficar sozinha, não conseguia conceber a hipótese de arrastar um relacionamento morno ou falido só porque já se habituara ao cansativo homem com quem dividia a cama. Agora, porém, os olhos falhavam, os braços não eram suficientemente longos para ler as revistas de que tanto gostava, afastava pessoas e sentia-se confortável para ler suas intenções à distância. Alguém dissera que a presbiopia tende a se estabilizar após os sessenta e cinco anos. Se aquilo era verdade, ela tinha pelo menos mais vinte e cinco anos para aproveitar tudo o que a instabilidade tinha a lhe ensinar.

quarta-feira, agosto 30, 2006

Castidade

Recolhera em um cesto as roupas sujas do sacerdote. Já era dia vinte e oito, quase trinta dias passados desde a última vez em que vira aquela mancha no lençol. Era sagrado: de quinze em quinze dias o lençol era lavado, as roupas de dormir também e o colchão tinha que ser colocado discretamente ao sol. Nunca tinha ficado mais de vinte dias sem o alívio que vinha do sonho.


Lembrou da primeira vez em que recebeu o lençol sujo e, assustada, ouviu do padre a recomendação de colocar o colchão para secar ao sol. Já tinha visto isso acontecer com seu irmão, mas ele era um adolescente pecador, devasso, não deveria ser assim também com o padre. Ela tinha quinze anos, era seu terceiro dia como lavadeira e ele teve a paciência de explicar que aquilo que ela via nada tinha a ver com pecados da carne, chamava-se polução noturna e era uma forma que Deus havia criado para esvaziar o depósito de sêmen quando o homem era casto. Segurou um risinho, será que seu irmão Otávio, que alardeava ser o maior garanhão da vila, era casto? Se o padre dizia… De fato, quando arranjou namorada fixa, Otávio parou de colocar o colchão na varanda para secar. Depois teve filho e casou, ficou claro que a castidade tinha ido para a lua. Mas não a do Padre Fernando. Depois de dez anos ele ainda continuava a lhe entregar a prova de sua castidade a cada quinze dias, contados no calendário. Certo dia se atrasou dois dias, outro, veio três dias adiantado, mas deve ser como a menstruação das mulheres, atrasa, adianta, mas vem.

Ela também era casta, não queria conversa com homem, sua vida era o padre. Começou como lavadeira, agora fazia quase todos os serviços e descobrira em Padre Fernando um homem dedicado e sincero, de sorriso puro, bem diferente do Padre Afonso, que tinha olhar lascivo e fazia brincadeiras de mau gosto, ou do Padre Rodolfo, que vivia com crianças e adolescentes e depois que leu alguma coisa no jornal sobre um padre que fazia maldades com crianças, ela começou a desconfiar. Irene, lavadeira do Padre Rodolfo, disse que a última vez em que teve que colocar o colchão ao sol foi em 1990. Casto ele não era. Não mesmo.

Quinze dias era o prazo certo, dezoito dias era o máximo, mas quase trinta? Quase trinta era muita coisa. Será que ele pecou? Será que saiu com alguma dona? Talvez aquela loira que vivia se confessando, ou aquela morena de pernas grossas que usava minissaia na missa e sentava no primeiro banco? Não, Padre Fernando era casto. Será que ele caiu na tentação da carne? Teria se masturbado no banheiro, longe dos lençóis? Não, ele não faria isso, não faria mesmo. Mas trinta dias era muita coisa para quem funcionava de quinze em quinze dias. Se fechasse trinta dias ela iria perguntar, ele teria que dizer, que confessar, não era justo, ela lavava sua roupa e cuidava da casa há dez anos, dez anos sem outra vida, dez anos de dedicação, não era justo que ficasse nessa dúvida, nessa angústia.

Ele era um homem alto, alto e bonito. Forte, olhar suave, sorriso que derreteria o coração de qualquer mulher, se ele não fosse padre. Ah, mentira, mesmo ele sendo padre ela sabia que quase todas as mulheres da paróquia se derretiam por aquele sorriso. Era um interesse estranho, se interessavam porque ele era padre, mas se ele se interessasse por elas, não poderia mais ser padre, e não sendo ele mais padre, elas não se interessariam mais por ele. Mas ela o conhecia além da batina. Ela lavava sua batina, passava e deixava estendida para que ele a usasse. Ela queria que ele a usasse. Ele era muito mais do que um padre, era especial. Enviado de Deus para aquela paróquia depois da morte do Padre Alberto.

Era difícil de limpar. Se espalhava pelo lençol de baixo, enchia a mão, encostava no lençol de cima, ensopava o pijama, e ela pensava na triste sina de todo aquele líquido. Tinha sido feito para estar dentro de uma mulher, para gerar um filho, e agora jazia, inerte, à morte, naquela cama. Jamais estaria dentro de uma mulher, jamais geraria um filho. Triste, muito triste que Deus faça um homem com todos esses líquidos para não deixar que ele os use. Se os padres são predestinados por Deus para serem padres, por que não nascem sem a função masculina? Por que precisam produzir sêmen e sujar a roupa de cama de quinze em quinze dias? Será que o sêmen dos padres é igual ao dos outros homens? Será que tem sementinha também?

Quase trinta dias. Ela estava preocupada. Será que ele caiu em pecado? Ou terá virado santo? Talvez, finalmente, Deus tenha tirado dele essas coisas inúteis reprodutivas. Não deve ter mais desejo nenhum, nem glândula e aquelas coisas que ele explicou, não deve mais ter polução noturna porque alcançou a santidade. Nesse caso, ela nunca mais teria que colocar seu colchão ao sol, discretamente, para esconder aquele segredo que era só dos dois. Mas ele diria, se houvesse a possibilidade da santidade ele diria quando explicou sobre a polução noturna “padre também é homem” ele disse, certa vez. Não ele. Ele era mais.

Talvez ele tenha caído no pecado da masturbação. Ela também de vez em quando não resistia. Deitada, em sua cama, aqueles pensamentos pecaminosos devastavam sua mente e ela se espalhava pelo lençol de baixo, enchia a mão, encostava no lençol de cima, ensopava o pijama, queria que ele a usasse, na tentação da carne, e a deixasse à morte, naquela cama. Depois rezava, rezava, rezava e se punia, se penitenciava. Na semana anterior, finalmente, reuniu coragem para se confessar. Contou tudo. Falou das noites em que pensava nele, falou do líquido, falou da carne, do lençol, do travesseiro, da vez em que deitou sobre o colchão, que sentiu o gosto, que ignorou a castidade, a sua castidade, a dele, do quanto era dele. Falou tudo, ele, calado. No final, recomendou-lhe as rezas que ela já sabia de cor. E calou-se.

Professor: Fabricio Carpinejar

Exercício: Texto livre: o depoimento da lavadeira do padre, que recebe suas roupas sujas após polução noturna.

Data da aula: 23 de agosto de 2006

Um novo olhar

Não enxergava mais como antes, desde o aniversário de quinze anos da filha. Para ler, precisava afastar o livro do rosto, ou as letras embaralhavam-se. Vivia cansada, com dores de cabeça, não conseguia mais enxergar o buraco da agulha e as camisas do marido ficavam sem botão, definitivamente. As reclamações eram tantas que certo dia as camisas sem botões ficaram sem dono, definitivamente. Foi ao oftalmologista e descobriu a presbiopia, o médico explicou que era uma consequência natural do envelhecimento, os músculos oculares perdem a flexibilidade e o cristalino torna-se menos elástico, perdendo sua capacidade de acomodação, por isso a dificuldade de enxergar de perto, por isso a necessidade de mais luz para ler. Ele definiu a presbiopia como uma condição óptica onde as modificações produzidas pela idade diminuem de modo irreversível o poder de acomodação.

Há tempos percebia isso, a falta de flexibilidade, a dificuldade em enxergar de perto, a necessidade de afastar objetos, pessoas, sentimentos. Com o passar do tempo ela, que era apenas exigente ao escolher um homem, tornara-se seletiva demais, quase intolerante. Inflexível, como seu cristalino. Quando mais novos, somos mais flexíveis, aceitamos melhor os defeitos do outro e conseguimos um bom relacionamento mesmo com as diferenças, com o passar do tempo, perde-se a flexibilidade, a elasticidade, a capacidade de adaptar-se facilmente ao que está perto. Perdera a capacidade de acomodação, sentia-se incomodada com a falta de luz nos relacionamentos, queria tudo às claras. Ao mesmo tempo, enxergava melhor de longe. Quanto mais perto estivessem as pessoas, menos ela conseguia vê-las, só notava a presença à distância.

Sem perceber, ela afastava as pessoas, afastava os homens, os filhos, a família, porque precisava enxergá-los melhor, afastava o jornal, a agulha e a linha, afastava de seus olhos o que necessitava urgentemente de ver. Tornara-se seletiva, ela sabia, porque agora só enxergava de longe, só conseguia ver o que estava lá na frente, ao contrário de antes, em que pensava no hoje, no imediato, ela agora escolhia olhando o futuro, para saber se seus filhos cresceriam bem com aquele padrasto, se haveria algum depois para aquele relacionamento, tentava adivinhar se conseguiriam ficar juntos depois do jantar, depois da cama.

Passara tempo demais olhando para o passado, os anos escorregavam, as crianças cresciam, não havia mais tempo para viver de ensaios. Não era exigente, era precavida. Descobriu que quando se aproximava demais, não enxergava nada, era devorada pelos sentimentos e não conseguia pensar em futuro algum, sobrava apenas um dia após o outro, que ela só só enxergava ao se afastar. Não conseguia mais imaginar-se com qualquer um só para não ficar sozinha, não conseguia conceber a hipótese de arrastar um relacionamento morno ou falido só porque já se habituara ao cansativo homem com quem dividia a cama. Preferia ficar sozinha a perder tempo, precisava pensar em depois, precisava olhar longe, perdera a capacidade de acomodar-se.

Agora, porém, os olhos falhavam, os braços não eram suficientemente longos para ler as revistas de que tanto gostava, afastava as pessoas, o máximo possível, e sentia-se confortável para ler suas intenções, à distância. Alguém dissera que a presbiopia tende a se estabilizar após os sessenta e cinco anos. Se aquilo era verdade, ela tinha pelo menos mais vinte e cinco anos para aproveitar tudo o que a instabilidade tinha a lhe ensinar.

Professor: Fabricio Carpinejar

Exercício: Utilizando-se da personagem delineada na investigação do inventário, escrever uma crônica fazendo uma relação entre a presbiopia (enxergar mal de perto depois dos 40 anos) e o fato de ser seletiva nos relacionamentos. O texto deve ser em primeira pessoa, como se você fosse essa personagem (com exceção da Vanessa, que deve fazer um texto em terceira pessoa).

Data da aula: 23 de agosto de 2006

O Filho da Puta

A expressão “filho da puta” é ímpar. Existem poucos momentos no português em que o significado que nossa alma exige e o vocábulo escolhido se encontram de maneira tão intensa. Esse encontro nos produz uma satisfação, tanto de palavra plena, como uma idéia de que dissemos o que tínhamos para ser dito. Porém, se no plano emocional o resultado é impagável, quando nos pomos a raciocinar sobre o que foi mesmo que proferimos podemos nos embaraçar um pouco. Inegavelmente a expressão é forte e ampla, mas na mesma medida é inapreensível e vaga. E convenhamos, já é tempo de desfazer sentidos óbvios, cada vez menos acreditamos que a genitora estaria relacionada com o destino ignóbil de sua cria.

Essa indefinição é um problema sério. Afinal, a realidade é que estamos bastante rodeados de filhos da puta e deles pouco sabemos. Nosso esforço será então estabelecer algumas linhas de pensamento para definir o problema e aproximar-nos da essência do filhadaputismo. Sabemos que nosso objetivo por enquanto é impossível, mas podemos sonhar com o dia em que possamos ouvir da boca de um juiz: “- caro senhor, o processo por difamação não procede. O senhor é realmente, estrito senso, um filho da puta.” Ou seja, que o vocábulo tenha chegado ao um sentido quase científico, inclusive de valor legal.

Infelizmente, porém, a probabilidade maior é que tenhamos que alterar o “filho da puta”, é mais fácil a expressão cair em desgraça do que abstrair-se de seu valor literal e adquirir um sentido científico. Criada em um tempo em que mulheres se casavam virgens, mães solteiras eram vistas como prostitutas (a maioria acabava migrando para a prostituição mesmo) e a prostituição era uma profissão mal vista pela sociedade, o vocábulo tornou-se uma das melhores formas de ressaltar a inferioridade (principalmente do caráter) de alguém e, de quebra, ofender-lhe a mãe.

Hoje, quando quase ninguém se casa virgem, mães solteiras são tão comuns quanto mães casadas e a prostituição é vista com admiração e respeito, não seria de se estranhar que alguma prostituta enxergasse o preconceito que essa expressão carrega consigo. O fato de uma mulher ser profissional do sexo não a faria (segundo a concepção que temos atualmente, não segundo o que era certo na época em que o “palavrão” foi criado) pior ou menor do que ninguém, assim como seus filhos não seriam inferiores ou menos dignos do que os filhos de uma executiva ou de uma lavadeira. Sendo assim, a expressão “filho da puta” correria o sério risco (e já corre, imagino) de se transformar em um daqueles termos politicamente incorretos, a serem banidos de uma sociedade civilizada.

E ficaríamos sem o libertador palavrão, já que a pessoa que chamasse alguém de “filho da puta” correria o risco de levar um processo e ser rotulado de preconceituoso. As prostitutas pagam impostos, lutam pela regulamentação da profissão, se organizam em sindicatos e escrevem best-sellers. Em pouco tempo, chamar um indivíduo de “filho da puta” será um belo elogio. Nas palavras da socióloga e presidente do Sindicato das Prostitutas do Rio de Janeiro, Gabriela Leite, “Em países como a Alemanha e a Holanda, onde a prostituição é regulamentada, as “profissionais do sexo” têm seus direitos trabalhistas garantidos como qualquer outro profissional. A exemplo desses países, a prostituição precisa ser considerada por todos os governos que defendem uma sociedade justa, sem violência, sem discriminação e, principalmente, sem preconceito.”

Com tantas prostitutas, de luxo (as eufemísticas “garotas de programa” ou “acompanhante de executivo”), de boate, de estrada ou de esquina, de um cliente só ou de vários, tendo filhos por amor, por descuido ou por vontade, estamos cercados de filhos-da-puta sem nos darmos conta, em diversas áreas da sociedade, em todos os níveis sociais. Em uma visita ao fórum, por exemplo, é fácil encontrar um juíz que seja filho da puta, mais fácil ainda é encontrar um advogado que seja filho da puta (pelo simples fato de estarem em maior número), muito provavelmente você tenha um vizinho que seja filho da puta, um chefe que seja filho da puta e todos nós já votamos em algum político que era (e jamais desconfiamos) filho da puta. Talvez todos filhos da mesma puta, ou de putas diferentes, não nos cabe fazer intromissões na vida privada dos indivíduos.

Em breve teremos que encontrar um correspondente à altura para substituir o “filho da puta”, que, após sobreviver durante tantos séculos, depara-se com uma época em que termos não conseguem ser dissociados de seu sentido literal e que o preconceito atinge com violência um inofensivo filho da puta que não tinha a menor intenção de ofender a mãe - ou a profissão - de ninguém.

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Professor: Mario Corso

Exercício: Os dois primeiros parágrafos foram escritos pelo professor, a proposta é escrever um ensaio, encontrando a saída para o conflito proposto.

Data da aula: 30 de agosto de 2006

terça-feira, agosto 22, 2006

A Barreira do Absurdo

No sábado cheguei de viagem, meu pai me recebeu na rodoviária e me levou para casa. Conversamos frivolidades, marcamos um churrasco para sexta, ele ficou brincando com minha sobrinha na sala enquanto eu fui ao quarto, para desfazer as malas. Saiu sem se despedir de mim, certamente com pressa. Não estranhei, ele estava sempre apressado. O domingo transcorreu tranqüilo, pensei em ligar para ele, mas preferi deixar para segunda à tarde, eu não gostava de telefonar no final de semana porque sua mulher atendia sempre de má vontade.

Nunca convivemos, ele saiu de casa quando eu tinha apenas um ano, minha mãe criou sozinha os cinco filhos, eu era a caçula. Meu pai fazia visitas eventuais e ultimamente estava sempre ocupado. Não tirava férias há doze anos, fumava muito, se estressava demais, andava como se tivesse um peso enorme sobre os ombros.

Na segunda-feira pela manhã fui acordada por minha irmã. Sentou-se aos meus pés e, com os olhos cheios de lágrimas, disse:

- Papai passou mal no trabalho hoje de manhã, foi levado ao hospital, mas não resistiu.

Permaneci imóvel. Pedi a ela que me explicasse: “Não resistiu? Como não resistiu?” Ela foi direta:

- Papai morreu.

A morte é sempre trágica, é sempre forte. Não importa em qual circunstância, ela sempre nos arranca algo, lá dentro. Mas quando vem de forma abrupta, sem aviso, sem preparação, sem velhice, sem longa doença, quando vem aos 57 anos, atrapalhando os planos, abortando o churrasco de sexta, a conversa ao telefone e tantas coisas que protelamos por anos, tanto a ser resolvido, tritura um pedaço de nós.

A dor é um impacto, como se batêssemos violentamente contra um muro e só restasse o silêncio. Nenhuma palavra é forte demais para descrever o impacto, para quebrar a barreira do absurdo, do choque, a dor está além de qualquer verbalização, de qualquer vocalização, de qualquer lágrima, de qualquer gesto.

Não sei quanto tempo durou minha petrificação, as palavras de minha irmã reverberando em minha mente: “Papai morreu”, o espaço entre o ceticismo e o desespero preenchido pelo silêncio, como se buscasse a paz antes do desmoronamento, como se o tempo tivesse congelado para adiar o caos, enquanto a realidade, pouco a pouco, tomava forma em minha mente. Eu nada ouvia além do eco das palavras recém ditas: “Papai morreu”. “Não resistiu”. “Morreu”. “Morreu”. Então, subitamente, tudo voltou, em um ritmo alucinante, girando sobre minha cabeça, como se desabasse sobre mim o teto de minha própria vida, a tempestade, a realidade, o fim, a violência da morte, da ruptura.

A dor que mais dói não se pode sentir, é ausência, é silêncio. Amortece o corpo, entorpece os sentidos, por um instante que parece eterno. A emoção intensa imobiliza, seja ela dor, tristeza, medo, amor ou felicidade, emoções maiores do que podemos suportar causam um estranho efeito petrificante, até que o corpo consiga processar a informação e esboçar alguma reação coerente.

Em um segundo, o abismo que separa as emoções e as reações racionais torna-se quase palpável. E esse segundo, que arrasta-se por instantes intermináveis, talvez seja uma válvula de escape da qual nosso cérebro se utiliza…a ausência de reação normalizaria nossos batimentos cardíacos, nossa pressão sanguínea, colocaria nosso cérebro em ponto de partida, para que conseguíssemos, assim, sobreviver ao choque e nos reerguer. Ainda que a dor intensa, após o baque, seja quase física, o corpo sempre encontra um caminho para seguir adiante, obrigando a alma, devastada, a lutar.

Professor: Mario Corso

Exercício: Escrever um ensaio sobre o inefável, sobre um momento em que ficamos sem palavras para definir um sentimento. Utilizamos, como texto de apoio, o ensaio sobre a tristeza, de Montaigne

Data da aula: 16 de agosto de 2006

terça-feira, agosto 15, 2006

Tem Bicho no Dinheiro

Não é a primeira vez que um animal estampa uma cédula brasileira, a família de beija-flores que figura na nota de 1 Real já teve seus dias de desvalorização, no início da década de 90, impressa nas cédulas de cem mil Cruzeiros. Poderíamos pensar que o Brasil não valoriza seus heróis nacionais (quem são eles mesmo?) ao notar que apenas a cédula de 10 Reais comemorativa dos 500 anos do descobrimento, feita em polímero, traz a figura de um homem, Pedro Álvares Cabral. Essa cédula anômala também é a única a não ter a efígie da República que, aliás, já esteve presente, idêntica, na nota de 200 Cruzados Novos, no final dos anos 80.

O Brasil parece ter uma dificuldade enorme de se afirmar como um país em desenvolvimento, grande, urbanizado, com conteúdo e entrega-se facilmente ao comodismo de ser valorizado essencialmente por suas belezas naturais. O fato de ter em suas cédulas expoentes da fauna em detrimento de figuras humanas importantes, passa a infeliz imagem de que o Brasil é um país sem história, sem passado. Também passa, aos mais otimistas, a errônea mensagem de que o Brasil valoriza a natureza, visto que os animais estampados nas cédulas estão em franca extinção, sendo caçados e destruídos nos “risonhos lindos campos” floridos de nossa pátria.
Não podemos nos esquecer, porém, que à época do lançamento do Real não pegava bem estampar cédulas neste país. O Brasil passou muitos anos com inflação descontrolada, o que desvalorizava o dinheiro rapidamente (alguém se lembra dos famigerados carimbos que marcavam alterações no valor das notas?), era constrangedor e ultrajante figurar em cédulas desvalorizadas. Mais de uma vez a família de um “homenageado” negou a autorização ao Banco Central.

Hoje, com a economia estabilizada (pelo menos em comparação com o final dos anos 80 e início dos anos 90), a idéia de ter o rosto impresso em cédulas de Real não ofende ninguém. A hipótese de trocar os animais por ícones humanos foi pesquisada pelo Banco Central em 2005, mas ainda não se sabe se sairá do papel, ou melhor, se irá para o papel.

A explicação oficial do Banco Central é que o lançamento do Real foi de emergência e não houve tempo de negociar com parentes de personalidades. Então, mesmo sem a autorização dos beija-flores, tartarugas marinhas, garças, araras, micos-leões-dourados, onças-pintadas e garoupas, um representante de cada uma dessas famílias tornou-se a cara, respectivamente, das notas de 1, 2, 5, 10, 20, 50 e 100 Reais. “A cara”, literalmente, diz-se que no Amapá os índios reconhecem o dinheiro pelos animais que estampam as cédulas, assim, algo pode custar uma arara e uma garça (15 Reais), um mico, uma garça e um beija-flor (26 Reais) e assim por diante. Cá entre nós, seria interessante se os índios pudessem negociar pedindo três Monteiros Lobatos, por exemplo, por uma mercadoria, ao invés de três araras. Mas, pensando bem, haveria uma briga pelo direito de estampar as notas mais altas em detrimento das de menor valor.

Ter animais em uma das faces de nossas cédulas pode ter tanto uma conotação positiva quanto negativa, dependendo dos olhos de quem analisa a situação, mas o fato é que, em nossa selva urbana, dificilmente alguém presta atenção em quem aparece nas notas. Quem sabe seja mesmo uma forma de desvalorização e banalização atribuir um valor à imagem de quem quer que seja, talvez mais respeitoso seria homenagear a fauna brasileira e grandes nomes de nossa história e cultura estampando apenas símbolos, como a efígie ou o brasão da República e pinturas representativas de simbologia cívica. Assim, caso alguma desgraça se abata sobre nossa moeda novamente, ninguém terá seu nome (e seu rosto) manchado por um carimbo.

Professor: Mario Corso

Exercício: Escrever um ensaio discorrendo sobre a possível razão de nossas cédulas serem estampadas com figuras da nossa fauna em vez de com figuras históricas.

Data da aula: 09 de agosto de 2006

quarta-feira, agosto 09, 2006

Começando

Mais um blog. Não que eu não goste, muito pelo contrário, passei anos lutando contra computadores e internet, repetindo aos quatro ventos que eu odiava profundamente qualquer uma dessas ferramentas, escrevia textos enaltecendo a máquina de escrever, em detrimento do computador, que para mim era uma ofensa à verdadeira arte de produzir um texto.

Na minha cabeça jurássica, o computador era um facilitador e, assim, banalizava o trabalho que eu tanto prezava. É, eu sei, não faz o menor sentido, nunca fez, mas era uma boa desculpa para esconder meu medo da novidade. Eu gostava do som desafiador do “tec, tec, tec”, gostava de me sentir transgressora quando meu irmão acordava, bravo, reclamando do barulho que eu fazia a digitar. Pobre futuro médico, com aula marcada para a manhã seguinte, incomodado pela irmã ignorante que fugia da modernidade silenciosa.

Fui praticamente obrigada a mergulhar na era digital quando comecei a primeira faculdade, de jornalismo, no longínquo ano de 1999. No laboratório de redação, todo mundo integrado à nova realidade, exceto o fóssil que vos escreve. Um colega sugeriu, bem feliz, que entrássemos em uma determinada sala de bate-papo do UOL. Todo mundo, rapidamente, tratou de digitar o endereço e entrar na sala.

Olhei para o monitor, o monitor olhou para mim, eu não sabia o que fazer. Não sabia usar o mouse, não sabia onde era a barra de endereços, não sabia absolutamente nada. Foi traumático, até porque não pedi ajuda e ninguém se ofereceu para ajudar aquela alienígena que nunca tinha usado um computador em toda a sua longa existência. Eu era uma das mais velhas, com dezenove anos, e já deveria saber aqueles passos de cor e salteado.

Hoje sei que não perdi nada naquela noite, por não saber entrar em uma sala de bate-papo, mas para chegar nesse nível de compreensão das coisas, tive que descobrir como tudo funcionava. De lá para cá, deixei no lixo todo o meu preconceito contra computadores e internet, frequentei grupos de discussão, fui expulsa por escrever demais, criei o primeiro blog, depois mudei de servidor, criei o segundo, o terceiro, o quarto e virei uma espécie de viciada.

Conheci outros blogs, gente que também gostava de escrever e de literatura, fiz amizade com gente de outras cidades, conheci um rapaz muito criativo, que escrevia e desenhava em um blog sob um pseudônimo, me casei com ele e me arrependi profundamente de um dia ter praguejado tanto contra toda essa tecnologia que, inclusive, me permitiu fazer o curso dos meus sonhos. Se eu não tivesse enfrentado o computador e me familiarizado com todo esse mundo, não estaria em Porto Alegre, não teria conhecido a Paula, não teria recebido dela o email com o curso que ela achou a minha cara.

Portanto, seja bem-vindo o novo blog, estou certa de que ele abre, neste momento, uma nova fase da minha produção textual.

terça-feira, julho 18, 2006