quarta-feira, setembro 27, 2006

Desenvolvimento de Texto

Para desenvolver primeiro é preciso envolver. Desenvolver é desvendar, tirar a venda, desabraçar, tirar o mistério, desvelar, deixar cair o véu. Desenvolver um texto que não envolve é um paradoxo, simplesmente não é possível. Ou talvez até seja, mas não cumpre seu propósito. O texto estará fazendo qualquer coisa menos desenvolvendo, invente outra palavra.

O texto primeiro tem de envolver, abraçar, conquistar, vendar, elevar a curiosidade, abraçar, instigar para depois começar a despir-se diante do leitor, como em um relacionamento. Quando houver intimidade o suficiente é permitido que se retire o mistério, se desenvolva, desembrulhe, sem, no entanto, desencantar.

Lentamente ele se mostra, por inteiro, e se deixa conhecer por completo. Então, totalmente entregue, ele se encerra, deixando, no ar, um leve aroma de saudade.

sexta-feira, setembro 22, 2006

Me perdi hoje. Ela me deixou em cima de uma mesa e certamente está à minha procura. Sou um sapato boneca. Não fui escolhido por acaso, ela me queria. Experimentou, perguntou o preço e levou. Ela preza o conforto. Não se importa se minha tinta descasca ou se minha sola se desgasta. Me pisa pelo lado de fora, porque anda muito depressa.

Estamos juntos há muitos anos e sou um de seus preferidos. Ela é reservada, não se mostra, não expõe sua delicadeza, se esconde. Me esconde. Andamos por muitos lugares, ela sabe onde quer chegar, mas não sabe como, não me diz como. Esconde sua beleza e sua intimidade. Não gosta de se expor, por isso sou discreto.

Pequena, delicada, romântica. Mantém uma paixão platônica e não tinge os cabelos. Avessa à maquiagem, não quer ser vista. Só eu a vejo. Só ela me vê.

Liquidificador

Não liberto mais palavras. Aqui, incerta é a minha fachada. Escreverei para sempre. Não tenho medo de escolhas, eternas e absolutas. Encerro portas. Não falo. Devo mostrar-me mais. Escondo a maquiagem. Não preciso de olhares. Não pense que enxerga algo. Não procuro mais palavras, elas me fogem. Deixo a sombra e atravesso ao outro lado. Folhagem. Tranco o que é meu em uma caixa. Guardo. Me cansam olhares de um mundo que não é meu. Esqueço. Leiam, apenas, não me olhem. Não falo, escrevo. Não me julgue pelo seu mundo, ninguém conhece o meu. Me desconstruí e reconstruí tantas vezes… Sou várias. Sou todas. Nenhuma. Silêncio. Respiro.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Ego Post

Me pediram uma foto, uma frase de um escritor como epígrafe, uma lista de livros preferidos e uma frase de próprio cunho que me defina. Demorei um bocado, indecisa que sou, para escolher a foto, a frase do escritor e fazer a lista de livros e autores favoritos. Na hora de escrever uma frase que me definisse, achei que soaria meio artificial construir alguma coisa assim, do nada, então resolvi procurar em textos antigos uma frase minha que me definisse, de verdade. O fato é que encontrei tantas que as agrupei em blocos ridículos e desconexos e elas são todas tão ruins que - achando que seria um grande desperdício escolher apenas uma e ignorar as quatrocentas e sessenta e cinco mil restantes - decidi utilizar esse espaço para elencá-las, somadas a alguns fragmentos maiores de textos. Assim deve ficar mais fácil escolher alguma ou inventar uma nova a partir de todas essas. Talvez seja uma forma de fazer com que me conheçam melhor, talvez seja um modo mais rápido de convencer alguém a me internar no hospício. Quem sabe?

“Sou massinha de modelar. Assim, como aquelas que gosto de transformar em frutas, animais, rostos. Misturo cores, fico horas pensando em um novo formato, arrisco daqui e dali e sei que nunca vai secar. Pode até derreter um pouco, mas secar, jamais.”

“Sou fã de espaços. Espaços são mais importantes do que letras grandes, para mim. Sem eles, tudo se embaralha horrivelmente, mesmo com óculos.”

“Algumas pessoas nascem prontas para seguir rotinas, outras vêm com defeito de fabricação. Eu sou uma delas. Totalmente desprovida de senso de direção, noção de horários e agenda biológica de compromisso, sou escrava de anotações. ”

“Mais uma pessoa, como qualquer outra. Do mesmo tamanho das outras, do mesmo formato que as outras, talvez com um pouco mais de cabelo. Igual. Justo eu, que me sinto tão única, tão especial, tão diferente, sou exatamente igual a qualquer um.”

“Dá um pequeno desespero saber que todas aquelas pessoas que passam por mim são histórias que ficarão sem ser contadas, coisas que eu jamais saberei, que ninguém vai me dizer. E o conhecimento ao qual tenho acesso é tão mínimo diante da imensidão desse mundo e de tanta informação existente, que eu sou uma formiguinha carregando um minúsculo grão de açúcar, como se fosse grande coisa.Meu maior problema com a multidão é saber que ela passa por mim e não volta para contar a história. ”

“Eu sou a pessoa mais mal interpretada do universo, por isso às vezes tenho vontade de ficar calada em um canto, apenas ouvindo, com um sorriso discreto, porque qualquer interferência minha pode ser tomada de forma equivocada. Deve ser um dom.”

“Fui me reconstruindo, tapando os buracos, refazendo, redescobrindo e quando vi, me tornei uma pessoa que eu não conheço. Virei uma pessoa over. Tudo o que eu não tinha agora tenho em excesso. Facilmente mal interpretada, completamente exposta, às vezes com uma vontade horripilante de encontrar uma concha e virar ostra.”

“Sou muito ruim com metáforas desde o dia em que resolvi ser clara. Sou muito ruim com disfarces desde quando decidi ser autêntica. Sou muito ruim com palavras, desde que comecei a escrever. Algumas coisas são ruins comigo e isso eu realmente não sei explicar.”

“Não sou prepotente, não sou pretensiosa. Sempre soube que eu era um embuste. Na verdade acho que todo mundo pensa isso de si mesmo, vez ou outra. Porque só nós sabemos o tamanho das nossas fraquezas, dos nossos medos, da nossa insegurança, dos nossos erros… O olho humano vem com uma lente de aumento para as coisas ruins e as coisas boas estão todas escritas em letras miúdas.”

“Hoje não sei o que dizer, por isso não digo nada. Me escondo um pouco, descanso os olhos. Deixo de lado a minha vida para viver outras vidas, por alguns instantes.”

“Sou uma esponja que suga todas as influências ao redor e libera, se espreme, ao correr de uma caneta sobre o papel. Impeçam-me de escrever e eu morro inchada.”

“Costumo dizer que sou um felino, mais especificamente um gato, que gosta de paz, e sossego, sombra, carinho e água fresca, que prefere ficar em casa a sair por aí, se cansando. Gato castrado, obviamente, sem o stress hormonal que faz com que o pobre bicho contrarie sua natureza e viva na rua.”

“O ideal mesmo é eu poder escrever em um lugar com ar condicionado. Aí você terá uma Vanessa com 100% de sua capacidade mental e humor inabalável. Se além disso houver uma barra de chocolate, pode ter certeza de que terá uma ótima companhia para qualquer coisa.”

“São umas cinco lixas de unha assassinas que, juntas, cometem diversas atrocidades contra qualquer coisa que caia, incauta, dentro da bolsa. A carinha vermelha do meu celular já está quase branca, nada permanece com tinta, os papéis começam a se desfazer e canetas, óculos, o próprio visor do celular, tudo, tudo, tudo começa a ficar riscado. Eu achava que era algum campo magnético destrutivo interessado em desintegrar minhas coisas, mas quando meus óculos de sol ficaram esteticamente prejudicados por terem sido largados desprotegidos dentro daquele ambiente, desconfiei das lixas de unha. Posso dizer que encontrei as impressões digitais delas nas lentes. É uma quadrilha.”

“Por que é que eu consigo acumular tanta coisa? Comprar tanta coisa? Ajuntar tanta coisa? Empilhar tanta coisa? Amontoar tanta coisa? Por que eu não sou uma pessoa mais resumida, compacta, organizada, sintética? Por que meus textos têm que ser enormes? Coleciono palavras inúteis, papéis soltos, fotos fora do álbum, tiro as coisas das embalagens para que se sintam livres e elas se espalham…”

“Sabe aqueles perus de natal que a gente coloca no forno e que apitam quando prontos? Pois é, apitei hoje. Sou praticamente um peru de natal, metaforicamente falando, por favor. Apito. E saio do forno. Já sou meio bolo, algo estranho, um bolo de peru que acabou de sair do casulo. Sim, por mais intragável que eu pareça, garanto a qualidade.”

“Eu não fumo, nem bebo, então sou um ser saudável, mesmo que ligeiramente sedentária. Ando bastante e pretendo voltar à musculação. Menos pela saúde, mais pela estética, afinal de contas, no fundo, no fundo, eu sou superficial. E não quero chegar aos quarenta, cinquenta, lamentando que meu mundo caiu, ou que alguma outra coisa minha caiu. Mas é uma eterna crise de consciência. O trabalho braçal desvia a energia que poderia estar sendo usada pelo cérebro para o trabalho intelectual. Se não for verdade, ao menos é uma boa desculpa.”

“Sou um xarope concentrado, enjoativo, quase venenoso. Deve-se tomar em pequenas doses. Virei uns três vidros de mim nos dias que se passaram e enjoei.”

“Não sei escrever. Sei construir, derramar, tingir, pintar. Desenho as letras como gostava de desenhar rostos, quero perfeição e nunca consigo, prefiro pecar por excesso do que por omissão, sombreio bastante para dar realismo.”

“Por que devemos guardar as coisas em gavetas? Eu sempre encontro as coisas quando elas não estão guardadas, e sempre as perco quando estão. Querem nos fazer acreditar que perderemos aquilo que deixarmos fora das caixas, gavetas e garrafas enquanto sabemos que é bem o contrário. Por que nos dobramos a isso então? Por que dobramos?

Por que dobramos as roupas nas gavetas? Por que simplesmente não as deixamos emboladas, como elas gostam de ficar, naturalmente?

Eu ando espalhada, fora minhas garrafas de roupas no armário. Por dentro sou assim, não sou uma pessoa dobrada. Alguém me disse que nosso armário revela quem somos por dentro. Seria preocupante, se eu já não soubesse.”

“Durante muito tempo observei. Observei demais, falei pouco, com medo de falar bobagem. Há algum tempo o medo de falar bobagem passou, e passei a falar bobagem demais.”

“Todas as palavras que procuro, encontro em minha língua inventada. E posso ficar horas inventando histórias com milhares de palavras, sem repetir nenhuma, escrevendo contos intermináveis em minha cabeça e descortinando versos inexistentes.

A única parte ruim é que ninguém entende minha língua inventada. Como as palavras partem da minha cabeça, só a minha cabeça consegue decodificá-las. Não quero escrever um dicionário, dicionários aprisionam palavras. Não posso colocá-las em fila indiana e inventar regras gramaticais, porque elas se intimidariam e desistiriam de nascer.

Então fecho meu livro inventado, aquele que vive dentro da minha cabeça, guardo a caneta inventada, o gravador que dita palavras, que as mistura, modifica, inventa, renova. Guardo tudo naquela gaveta em que convivem alegremente as minhas coisas bagunçadas, dentro de minha inestimável caixa craniana. Procuro as palavras no idioma conhecido, esse, que uso para escrever este texto. Não as encontro. Procuro novamente. Trabalho ingrato.

Se quiser escrever para não ser lida, uso minhas palavras inventadas. Se houver quem me leia, tenho que me fazer entender, comunicar-me usando as palavras antigas, aquelas repetidas, que todo mundo entende. É quando guardo a liberdade em caixinhas e me esforço para fazê-la parecer que tem asas.”

quarta-feira, setembro 06, 2006

Obituário

Acho engraçado ler que saí sem dizer nada, enquanto me lembro de tudo o que disse. Teu problema é só entender palavras, enquanto algo não é dito ou escrito, é como se não existisse. Incapaz de compreender sutilezas, não percebeu os sinais que dei, não notou que a doença que se abateu sobre nosso relacionamento era fatal, não viu que ele agonizava, não se deu conta de que os músculos falhavam, ele não mais andava, não se alimentava, até que parou de beber água e morreu à míngua. Porque ele - o relacionamento - não falava, você não foi capaz de olhar em seus olhos e ver a dor, o sofrimento, o quanto ele clamava por um gole de alento, por um pedaço de carinho, de atenção, de respeito.

Não, eu não saí calada, eu saí gritando, saí rasgando as roupas da mala em uma fúria tão escandalosa que apenas sua indiferença não notou. E agora, quem sabe, você entenda a razão de eu ter tomado essa decisão, o simples fato de que cansei de traduzir tudo em palavras para que você pudesse entender, às vezes só sentir e viver é necessário, mas não com você. Você tem uma necessidade constante de legendas, irritante, é incapaz de observar meus olhos, meus movimentos, de interpretar minhas atitudes de maneira clara, sem que eu precise explicar detalhadamente tudo como se você fosse cego.

Sua cegueira emocional, que precisa de respostas lógicas por escrito é a principal responsável pela tragédia que se abateu sobre nosso relacionamento, que o levou ao último e desesperado suspiro. Sua carta só comprova o quão certa eu estava ao sair pela porta em busca de ar, você se preocupa com a explicação que vai dar para os seus pais, para os nossos amigos, para o cachorro, mas nada de se preocupar em me explicar alguma coisa, em tentar alguma mudança ou respeitar minha escolha. Por que não se empenhou em fazer dar certo? Por que deixou os dias correrem, os probleminhas se acumularem até que se transformassem no monstro que nos engoliu? Por que não se esforçou para que esse dia nunca chegasse e apenas deixou a vida nos levar?

Conte para os seus pais das noites em que dormimos separados, das minhas crises de choro que você interpretava como frescura, das vezes em que a comida queimou na panela porque nenhum de nós dois queria aquele jantar, porque aquele jantar não queria nenhum de nós dois. Conte para o cachorro que as coisas não são assim tão fáceis, que você não sente cheiros, que não é capaz de perceber a diferença entre o loiro acobreado e o vermelho intenso. Conte das vezes em que te esperei em casa de roupa nova, que passei a tarde inteira escolhendo no shopping para que você me achasse bonita e você se irritou porque eu havia saído do orçamento. Aproveite e conte também - para o cachorro - do dia em que me arrumei como nunca para conhecer seus amigos e seu chefe e você ficou bravo porque eu estava arrumada demais. Incapaz de compreender que eu queria ficar bonita para que eles te admirassem por ter conseguido que uma mulher tão interessante se apaixonasse tão enlouquecidamente por você. Mas você queria legendas. E eu terminei a noite chorando, sozinha. Talvez ele te entenda.

Eu gritei, meu amor, eu gritei, enquanto nosso relacionamento agonizava, à morte, de forma tão clara e dolorosa, você se mostrou tão surdo quanto cego e não fui capaz de te fazer compreender além do que você queria enxergar. Você tem o braço tatuado, isso sai com laser, com muito menos dor do que eu senti para apagar da minha alma o nome que você gravou a ferro quente. Tive que arrancar a carne, sangrando, para conseguir pensar em recomeço.

Não, eu não vou dizer que tenho de ser coerente com meus desejos, mas com minhas escolhas. Quando eu aceitei teu convite para ir morar contigo, escolhi ser feliz, escolhi deixar o sofrimento para trás e essa é uma escolha que não posso trair. Não podia mais continuar, vendo o cadáver do nosso relacionamento apodrecer sob o tapete enquanto você fingia que ele ainda caminhava pela casa, conversando com o nada. Manter nossa conta conjunta pode ser uma bela maneira de iludir-se com o fantasma do que fomos, se te apetece viver de passado e sofrer por ter feito a escolha errada enquanto havia tempo. Abro outra, não há problema. Mudo de nome como mudei de casa, troco os documentos e queimo as roupas, não sou mais a mesma pessoa.

Enquanto você não se convencer, a sala continuará com esse estranho cheiro de morte, de carne apodrecida, de decomposição, o tempo de salvar o moribundo já passou e nada mais pode ser feito senão deixar que queime no luto o cadáver, que descanse com dignidade, para que reste ao menos a suave lembrança dos dias em que fomos felizes, enquanto a vida pulsava forte e a pele do corpo era corada. Respeito. Permita-me velar meu morto e sofrer meu luto dignamente enquanto a dor não passa. Não deixe algo que era tão bonito ficar tão feio a ponto de causar asco, não quero ter vontade de rasgar nossas fotos e queimar suas cartas, respeite, resigne-se como me resignei enquanto via que minhas tentativas de mantê-lo vivo eram tão vãs quanto minha vontade de lutar por mais tempo.

Não se preocupe com o que dirá a seus pais, se preocupe com o que vai dizer para você mesmo.

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Professor: Mario Corso

Data da aula: 06 de setembro de 2006

Exercício: Formular uma resposta com bons argumentos para a carta abaixo:

“Eu quero uma resposta. Não vou aceitar essa tua saída porta afora sem dizer nada.

Sei do desgaste da nossa relação, sei que estava difícil (e qual relação é fácil?), mas não é humano saíres assim sem dizer nada.


Posso até suportar nossa casa vazia, meu peito vazio, mas não esse vazio de palavras. Não consigo ficar nessa dúvida: por que desististes, por que fostes embora?


Quero que me digas o que vou dizer para meus pais, para nossos amigos? O que faço com o cachorro cujo olhar me pergunta a que hora vais chegar? Porque não disseste que tinhas dúvidas quando escrevi teu nome no meu braço? Eu é que devia ter me dado conta quando não quisestes te tatuar também… Sabes por que? Por que tatuagem é pra sempre e na tua vida nada dura muito, tu não te compromete com nada mesmo! Não segui minha intuição por que te amava e fui apostando na relação.


Enquanto tu passa a borracha na nossa história e recomeças em outro lugar eu fico para trás, administrando o que sobrou da nossa vida. Consigo até te imaginar falando com as pessoas sobre como é “importante se renovar, manter as emoções em alta, ser coerente com os desejos” e todas essas tuas balelas de autonomia. Eu, incoerente com meus sentimentos que sou, de certo, fico aqui me cortando com os cacos do nosso relacionamento, alucinando tua presença em cada canto.


Continuo aqui onde me deixastes, esperando que me digas algo. Enquanto teu mail não chegar não faço nenhum movimento, não vou fazer nada do que pedistes, não fui no banco nem vou. Outra coisa, não liga. Quero por escrito. Sabe por que? Porque as letras duram…”

segunda-feira, setembro 04, 2006

Castidade - II

Recolhera em um cesto as roupas sujas do sacerdote. Dia vinte e oito, quase trinta dias passados desde a última vez em que vira aquela mancha no lençol. Era sagrado: de quinze em quinze dias lavava o lençol, as roupas de dormir também e o colchão tinha que ser colocado discretamente ao sol. Nunca tinha ficado mais de vinte dias sem o alívio que vinha do sonho. Lembrou da primeira vez em que recebeu o lençol sujo e, assustada, ouviu do padre a recomendação de colocar o colchão para secar ao sol. Já tinha visto isso acontecer com seu irmão, um adolescente pecador, devasso, não deveria ser assim também com o padre. Ela tinha quinze anos, era seu terceiro dia como lavadeira e ele teve a paciência de explicar que aquilo que ela via nada tinha a ver com pecados da carne, chamava-se polução noturna, uma forma que Deus havia criado para esvaziar o depósito de sêmen do homem casto. Segurou um risinho, será que seu irmão Otávio, que alardeava ser o maior garanhão da vila, era casto? Se o padre dizia…

De fato, quando arranjou namorada fixa, Otávio parou de colocar o colchão na varanda para secar. Depois teve filho e casou, ficou claro que a castidade tinha ido para a lua. Mas não a do Padre Fernando. Depois de dez anos ele ainda continuava a lhe entregar a prova de sua castidade a cada quinze dias, contados no calendário. Certa vez se atrasou dois dias, outra, veio três dias adiantado, mas deve ser como a menstruação das mulheres, atrasa, adianta, mas vem.

Ela também era casta, não queria conversa com homem, sua vida era o padre. Começou como lavadeira, agora fazia quase todos os serviços e descobrira em Padre Fernando um homem dedicado e sincero, de sorriso puro, bem diferente do Padre Afonso, que tinha olhar lascivo e fazia brincadeiras de mau gosto, ou do Padre Rodolfo, que vivia com crianças e adolescentes e depois que leu alguma coisa no jornal sobre um padre que fazia maldades com crianças, ela começou a desconfiar. Irene, lavadeira do Padre Rodolfo, disse que a última vez em que teve que colocar o colchão ao sol foi em 1990. Casto ele não era. Não mesmo.

Quinze dias costumava ser o prazo certo, dezoito dias, o máximo, mas quase trinta? Quase trinta parecia muita coisa. Será que ele pecou? Será que saiu com alguma dona? Talvez aquela loira que vivia se confessando, ou aquela morena de pernas grossas que usava minissaia na missa e sentava no primeiro banco? Não, Padre Fernando era casto. Será que ele caiu na tentação da carne? Teria se masturbado no banheiro, longe dos lençóis? Não, ele não faria isso, não faria mesmo. Mas trinta dias seria muita coisa para quem funcionava de quinze em quinze dias. Se fechasse trinta dias ela iria perguntar, ele teria que dizer, que confessar, não era justo, ela lavava sua roupa e cuidava da casa há dez anos, dez anos sem outra vida, dez anos de dedicação, não era justo que ficasse nessa dúvida, nessa angústia.

Um homem alto, alto e bonito. Forte, olhar suave, sorriso que derreteria o coração de qualquer mulher, se ele não fosse padre. Ah, mentira, mesmo ele sendo padre ela sabia que quase todas as mulheres da paróquia se derretiam por aquele sorriso. Um interesse estranho, se interessavam por ele ser padre, mas se ele se interessasse por elas, não poderia mais ser padre, e não sendo ele mais padre, elas não se interessariam mais por ele. Mas ela o conhecia além da batina. Ela lavava sua batina, passava e deixava estendida para que ele a usasse. Ela queria que ele a usasse. Ele era muito mais do que um padre, era especial. Enviado de Deus para aquela paróquia depois da morte do Padre Alberto.

Era difícil de limpar. Se espalhava pelo lençol de baixo, enchia a mão, encostava no lençol de cima, ensopava o pijama, e ela pensava na triste sina de todo aquele líquido. Tinha sido feito para estar dentro de uma mulher, para gerar um filho, e agora jazia, inerte, à morte, naquela cama. Jamais estaria dentro de uma mulher, jamais geraria um filho. Triste, muito triste que Deus faça um homem com todos esses líquidos para não deixar que ele os use. Se os padres são predestinados por Deus para serem padres, por que não nascem sem a função masculina? Por que precisam produzir sêmen e sujar a roupa de cama de quinze em quinze dias? Será que o sêmen dos padres é igual ao dos outros homens? Será que tem sementinha também?

Quase trinta dias. Ela estava preocupada. Será que ele caiu em pecado? Ou terá virado santo? Talvez, finalmente, Deus tenha tirado dele essas coisas inúteis reprodutivas. Não deve ter mais desejo nenhum, nem glândula e aquelas coisas que ele explicou, não deve mais ter polução noturna porque alcançou a santidade. Nesse caso, ela nunca mais teria que colocar seu colchão ao sol, discretamente, para esconder aquele segredo que era só dos dois. Mas ele diria, se houvesse a possibilidade da santidade ele diria quando explicou sobre a polução noturna “padre também é homem” ele disse, certa vez. Não ele. Ele era mais.

Deitada, em sua cama, aqueles pensamentos pecaminosos devastavam sua mente e ela se espalhava pelo lençol de baixo, enchia a mão, encostava no lençol de cima, ensopava o pijama, queria que ele a usasse, na tentação da carne, e a deixasse à morte, naquela cama. Depois rezava, rezava, rezava e se punia, se penitenciava. Há quase duas semanas, finalmente, reuniu coragem para se confessar. Contou tudo. Falou das noites em que pensava nele, falou do líquido, falou da carne, do lençol, do travesseiro, da vez em que deitou sobre o colchão, que sentiu o gosto, que ignorou a castidade, a sua castidade, a dele, do quanto era dele. Falou tudo, ele, calado. No final, recomendou-lhe as rezas que ela já sabia de cor.

E calou-se.

Um novo olhar - II

Não enxergava mais como antes, desde o aniversário de quinze anos da filha. Para ler, precisava afastar o livro do rosto, ou as letras embaralhavam-se. Vivia cansada, com dores de cabeça, não conseguia mais enxergar o buraco da agulha e as camisas do marido ficavam sem botão, definitivamente. As reclamações eram tantas que certo dia as camisas sem botões ficaram sem dono, definitivamente. Foi ao oftalmologista e descobriu a presbiopia, o médico explicou que era uma consequência natural do envelhecimento, os músculos oculares perdem a flexibilidade e o cristalino torna-se menos elástico, perdendo sua capacidade de acomodação, por isso a dificuldade de enxergar de perto, por isso a necessidade de mais luz para ler. Ele definiu a presbiopia como uma condição óptica onde as modificações produzidas pela idade diminuem de modo irreversível o poder de acomodação.

Já notara a falta de flexibilidade, a dificuldade em enxergar de perto, a necessidade de afastar objetos, pessoas, sentimentos. Ela, que era apenas exigente ao escolher um homem, tornara-se seletiva demais, quase intolerante. Inflexível, como seu cristalino. Quando jovens aceitamos melhor os defeitos do outro e conseguimos um bom relacionamento mesmo com as diferenças, depois perde-se a flexibilidade, a elasticidade, a capacidade de adaptar-se facilmente ao que está perto. Perdera a capacidade de acomodação, sentia-se incomodada com a falta de luz nos relacionamentos, queria tudo às claras.
Sem perceber, afastava as pessoas, os homens, os filhos, a família, porque precisava enxergá-los melhor, afastava de seus olhos o que necessitava urgentemente de ver. Tornara-se seletiva, ela sabia, porque só conseguia ver o que estava lá na frente, ela agora escolhia olhando o futuro, para saber se seus filhos cresceriam bem com aquele padrasto, se haveria algum depois para aquele relacionamento, tentava adivinhar se conseguiriam ficar juntos depois do jantar, depois da cama.

Olhara demais para o passado, os anos escorregavam, as crianças cresciam, não havia mais tempo para viver de ensaios. Não era exigente, era precavida. Descobriu que quando se aproximava demais, não enxergava nada, era devorada pelos sentimentos e não conseguia pensar em futuro algum, sobrava apenas um dia após o outro. Não conseguia mais imaginar-se com qualquer um só para não ficar sozinha, não conseguia conceber a hipótese de arrastar um relacionamento morno ou falido só porque já se habituara ao cansativo homem com quem dividia a cama. Agora, porém, os olhos falhavam, os braços não eram suficientemente longos para ler as revistas de que tanto gostava, afastava pessoas e sentia-se confortável para ler suas intenções à distância. Alguém dissera que a presbiopia tende a se estabilizar após os sessenta e cinco anos. Se aquilo era verdade, ela tinha pelo menos mais vinte e cinco anos para aproveitar tudo o que a instabilidade tinha a lhe ensinar.